Clotilde Tavares - Escritora
Quando cheguei aqui em Natal nos idos de 1970 uma das coisas que me surpreendeu foi a presença americana na cidade. Para mim isso era estranhíssimo, uma vez que ignorava o papel que Natal tinha desempenhado na Segunda Guerra Mundial. Vinda de Campina Grande, onde as praças principais da cidade se chamavam Clementino Procópio e Félix Araújo, nome ilustres da história da minha terra, não entendia porque a praça do centro da cidade em Natal se chamava Praça Kennedy. Surpresas e novidades para quem, como eu tinha adotado esta cidade Natal para viver. Depois, conheci o outro lado da Praça Kennedy, que para mim logo se transformou na Praça das Cocadas, e onde as pessoas se encontravam, no então agradável centro da cidade, na era pré-shopping-center.
As filas de gente bem vestida para as sessões do cinema Nordeste, a lanchonete vizinha sempre cheia, e os grupos de intelectuais e poetas que subiam da Livraria Universitária, na Rio Branco, e faziam ponto nas Cocadas dava o tom daquela época. Nas Cocadas vi apresentações memoráveis do grupo teatral Alegria Alegria, vi manifestações políticas, marquei encontros e muitas vezes fiquei horas de pé conversando bobagem com quem aparecia por ali. Um dia, em memorável comemoração poética, me encarapitei em uma das "cocadas" e declamei, ébria de álcool e poesia, um soneto de Augusto dos Anjos, tantas eram as saudades que tinha da Paraíba. O comedimento e a osteoporose da meia-idade não me permitem mais essas proezas físicas e a saudade da Paraíba amenizou-se depois da Internet, mas não posso passar por ali sem me lembrar disso.
Depois veio a decadência, a reboque da decadência do centro da cidade, fenômeno que não é somente de Natal mas de grande parte das cidades brasileiras, motivado pela insegurança e pela falta de estacionamento. Acabaram as lojas chiques, o cinema virou cine pornô, depois fechou, roubaram o busto de Kennedy - que a ninguém fez falta - e o lixo, a mendicância e a sujeira invadiram o pedaço. Um núcleo de resistência sobrevive, salvando a alma poética do centro da cidade: é o Beco da Lama, onde se reúne uma galera formada por gente das antigas e por novos e recentes integrantes, poetas, músicos, artistas plásticos, jornalistas, políticos, boêmios. Esse pessoal criou uma associação, chamada SAMBA (Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências), tendo à frente o poeta e jornalista Eduardo "Dunga" Alexandre, que está capitaneando um movimento para dar à Praça, que deve ser revitalizada em breve, um nome mais adequado do que praça Kennedy, uma vez que o político norte-american o já tem pelo mundo afora homenagens suficientes ao seu nome.
Como o brasileiro adora uma eleição, já está todo mundo votando e foram propostos os mais diversos nomes, cada um com seus defensores, homenageando alguma figura ilustre da cidade: Djalma Maranhão, Newton Navarro, Berilo Wanderley, Othoniel Menezes, Jorge Fernandes, Zé Menininho, Tonheca Dantas, Zé Areia, Zila Mamede, João Machado, Maria Boa, Paulo VI... As esquerdas (ainda existe isso?) propõem os nomes de Fidel Castro ou Che Guevara para contrabalançar os anos em que a praça se chamou John Kennedy; outros, mais irreverentes, querem o nome de Maria Mulamanca ou Gardênia Lúcia, exóticos e verdadeiros habitantes daquelas regiões. Para valer a voz de todos, foram propostos também os nomes já consagrados de Praça das Cocadas ou Praça Kennedy, mas a jornalista Cinthia Gushiken trouxe para o debate a melhor sugestão, que tem o meu apoio: Praça 14 de março.
É nesse dia que se comemora o dia da Poesia e em Natal a data tem um destaque que não se encontra em nenhum lugar que eu conheço. 14 de março é o dia da Poesia porque foi nesse dia que nasceu o poeta Antônio de Castro Alves, em 1824, na cidade de Cabeceiras, na Bahia.
Veja bem, meu caro leitor, e meu caro prefeito, se estiver lendo este artigo: o poeta Castro Alves disse que "a praça é do povo". A praça Kennedy/Cocadas tem tradição de abrigar a arte e os poetas. Então vamos esquecer o nome de todos esses vultos, dignos ou não da homenagem, e vamos chamar a praça de Praça 14 de Março ou Praça da Poesia, homenageando através disso todos os poetas, presentes, passados e futuros. E quem sabe, nessa praça do povo e da poesia, nas adjacências do Beco da Lama, a gente possa mobilizar energias em eventos que façam aquelas pedras e aqueles ares vibrarem de novo com a força da Arte, com a beleza da Poesia, com a alegria do encontro, com a irreverência da boemia, com o prazer de estar junto, como já aconteceu um dia.
Viva a Praça e viva a Poesia!