segunda-feira, fevereiro 14, 2005

Entrevista com Cascudo

Carlos Lyra

Tribuna do Norte
Sanderson Negreiros - Poeta e Escritor

A frase famosa do seu amigo e compadre José Mariano, que ele repete ao som nativo de uma gargalhada fáustica, "é mentira, mas é gostoso", .ganha foros de cidadania, agora, que ele atravessa o Cabo do Não, dos 72 anos completos; ou 72 primaveras, como gosta de repetir seu outro velho amigo, o poeta Jaime dos G. Wanderley. Frase famosa do homem famoso, considerado entre os cinco maiores folcloristas do mundo; conhecido na China de Mao ou em Angola, no Centro de Altos Estados de Princeton ou em Santa Maria do Sapucaí. Hoje, nome de rua, amanhã, nome de cidade, cidadão do mundo, o maior brasileiro vivo (que mais sabe o Brasil), como nos garantia Múcio Leão, ou um dos raros brasileiros atuais que eu admiro e respeito, como afirmava em carta, em nosso poder, o não menos cosmopolita e sertanejo Gilberto Amado (Cascudo: quando eu passo de navio pelas costas nordestinas, fecho os olhos e penso no grande Homem que você é) - também de outra carta do grande sergipano. Enfim: o sábio para quem a melhor filosofia está na expressão popular: "dá nó em pingo d'água". Travessia. Do homem que há 45 anos estuda o crepúsculo e de conselho, repete apenas um, advindo também da sabedoria do povo: "Cada um com sua certeza".
1. Guimarães Rosa dizia que só queria ser mesmo jacaré no rio São Francisco. E o velho Guima e Cascudo encontram-se, pela primeira vez, após 20 anos de admiração mútua, no Hotel Glória, Rio de Janeiro. Cascudo tomava um aperitivo com o Almirante Melo Batista, velho amigo. Guimarães entra no bar - há as apresentações formais e os dois grandes homens se desformalizam para iniciar uma conversa de 13 horas seguidas. O romancista mineiro, diplomata de carreira, tinha 20 anos de Europa. Mas o nome do continente não foi sequer cogitado. O assunto era e foi um só, dominante, metamórfico, estirado em léguas de bom conversar: o sertão. Tudo do sertão, todo o sertão - os longes, a alma, a anima, o animus, a definição de lonjura do sertão. Cascudo é outro jacaré, hoje escondido nesse rio invisível que é seu mundo interior, abrigo subterrâneo de riquíssimas descobertas.

2. Por isso, ele já disse: "Vivi no sertão típico, agora desaparecido. A luz elétrica não aparecera. O gramofone era um deslumbramento. O velho João de Holanda, de Caiana, perto de Augusto Severo, ajoelhou-se no meio da estrada e confessou, aos berros, todos os pecados quando avistou, ao sol-se-por, o primeiro automóvel. Calçava-se meia branca quando se tomava purgante de Jalapa. Mordido de cobra não podia ouvir falar de mulher. Os velhos tinham costumes inexplicáveis e venerandos. Tomavam banho aos sábados, davam a benção com os dedos unidos e quase todos sabiam dez palavras em latim".

Essa era, possivelmente, a conversa entre Cascudo e Guimarães. "Somos todos uns vaqueiros, Cascudo", disse-lhe o autor do "Grande Sertão Veredas".

3. Sou a única pessoa feliz que conheço. Pois sou exatamente aquilo que eu quis ser. Ainda acordo minha mulher de madrugada para mostrar-lhe a estrela-d'alva. E o único marido para quem a mulher chega e diz: "Cascudo, vá dar uma voltinha. Tomar uma cerveja". A reclusão já chegava a 20 dias de falta de contato com o mundo, quando do tempo desta reportagem.

Ou, então: "Menino magro, triste, amarelo, era distraído como certas consciências". Mas ninguém pode calcular o que lhe valeu de sacrifício e luta conseguir livros como o Katha Sarit Sagara, de Somaveda; o Hitopedexa, o Panchatantra, o Tuti-Namer, o Calila e Dimna, o Libro del Conde Licanor, o Disciplina Clericalis. Ou como dele escreveu Zila Mamede: "A invenção do microfilme foi-lhe uma libertação. Com esse novo meio de comunicação e transmissão da palavra escrita, ele tem trazido para Natal algumas raridades bibliográficas. Tem podido trabalhar em casa, sossegadamente, em textos do século quinze ou das primeiras décadas do século dezesseis".

4. Sílvio Pedroza era governador do Estado, mas deixava, quase sempre, no fim da tarde, todo o expediente do Palácio, para estar na casa de Cascudo e olhar o crepúsculo no rio Potengi, com os ensinamentos do mestre. Na tarde de uma segunda-feira, Ribeira morna, na então Peixada Potengi, ouvimos-lhe falar três horas e quatro garrafas de vinho somente sobre poetas de língua espanhola. Disse-me: "Paro no mexicano Amado Nervo, seu ignorante". Contei o fato, depois, para gáudio de Luís Maria Alves, que considerava Amado Nervo o poeta supremo. De outra vez, na mesma Peixada, deu uma aula inesquecível para mim, dois motoristas de táxi e algumas mulheres que vinham dos becos da Ribeira tomar a ceia de caldo de peixe. "Vou falar de pimenta do reino para vocês". Foi um deslumbramento.

Depois, fumando um dos seus 18 charutos diários, lamenta: "Na Eternidade, tem um grande defeito - não há livros". Mas tem rede do Ceará e o papo de seu Compadre José Mariano, ajuntei para seu riso sonoro e cantante. Cabeleira leonina, ouvindo só o que lhe interessa, disse-nos, certa vez, quando lhe havíamos invadido um armário de aço (secretíssimo), para conseguir as cartas de Mário de Andrade (e publicá-las na revista "Província"): "Três horas da tarde, Sanderson. Não almocei ainda e só almoçaria, agora, peixe assado na brasa com farinha seca". E fez o gesto da mão curva, jogando farinha na boca. "Se eu viajei muito? Viajei sete passaportes".

5."Eu peço a Vomicês todos/ os senhores que aqui estão/olhe lá, escute bem/ O que nos diz Fabião,/vou contar o sucedido/ de uma apartação".

Era o grande Fabião das Queimadas, o repentista maior, ex-escravo e poeta genial, cantando na casa (ou solar, como se dizia) do Coronel Cascudo. O menino, Cascudinho, guardava tudo de memória. Hoje, nele, reside sobretudo o poeta distraído, o grande inventor de formas claras de ver e definir o mundo. "La santa continuidad", de Eugênio D'Ors, que o mestre da Junqueira Aires gosta tanto de repetir. Como da invenção da quinta dimensão: onde ele exatamente vive.

6. "Meu tio Francisco José Fernandes Pimenta, irmão de minha mãe, justificava-se de acordar tarde em Natal quando, na fazenda, era madrugador: - "É que em Natal eu durmo devagar..."Ou mais: "Não cobiçarás coisas alheias. Você já viu alguém cobiçar o que possui?"

Outra certeza apreendida na experiência: "A vaidade atua em certos temperamentos como a adrenalina. Jamais esquecerei um conselho que me deu Pandiá Calógeras: Antes de discutir, pense se vale a pena convencer seu interlocutor".

Enfim: um permanente grande homem, construído por aquele frêmito pascaliano que faz com que se redimam as horas, o tempo e os defeitos gerais e humaníssimos, e dele cresça o espaço puro e compacto dos seus 72 anos, coragem de ter sido o que realmente quis ser: viajante do espírito, sem a lei de gravidade que prende o homem ao lucro, às divisas e às dúvidas. E ele é só dádiva permanente que se fez aos deuses e seus penates.

PS - 1. Esta conversa-entrevista com Câmara Cascudo aconteceu a 3 de janeiro de 1971. Inédita em livro, reencontrei-a agora em velhos guardados - e vai publicada em homenagem ao seu aniversário no dia 30 de dezembro, e quando sua filha, Ana Maria Cascudo, em gesto tão necessário, publica "O Colecionador de Crepúsculos". 2. Com esta crônica, entro em férias que me auto-concedo. Despeço-me dos possíveis e fiéis leitores.

por Alma do Beco | 4:54 PM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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