Será que algum dia poderei ser perdoada
por ter tido a pretensão de imaginar o que
aconteceu naquele fatídico 13 de dezembro?
Só uma pessoa, em algum momento da
eternidade, poderá me responder:
- Zila
Amanhece. No horizonte uma grande fogueira crepita em chamas vermelhas, laranjas e douradas e parecem duelar com as lilases, marinhos e ébanos que batem retirada, fugindo para reinar no hemisfério oposto. O dia surge inundado de luz e ofusca lentamente o brilho das últimas estrelas matutinas.
A claridade, tal qual flecha luminosa traspassa minhas pálpebras, lembrando que é hora de despertar.
Levanto apressada, há muito o que fazer, mas as primeiras horas da manhã sempre dedico a mim mesma; afinal, nada como uma longa caminhada, seguida por um vigoroso mergulho, para canalizar harmoniosamente a energia acumulada depois de uma noite de sonhos esquecidos.
Chego à praia. O ar repleto de maresia me invade os pulmões, enchendo-me de natureza. Mais do que isso: enchendo-me de Deus. Sinto-me repleta. Integrada à paisagem. Sou a paisagem.
As gotas de suor e a respiração ofegante avisam que devo passar para a segunda etapa desse meu ritual diário. Mergulho então no mar. Ah, mar querido, como é bom te sentir! Percebo então a osmose que acontece em toda superfície da pele. Sinto-me embebida de mar tão qual pão em sopa, inchando e diluindo-se, fundido-se ao mar.
Nado. O ritmo compassado e os movimentos sincronizados de pernas, cabeça e braços não permitem sentir o cansaço. Nado e penso, e nesses momentos transfiro-me para mundos outros.
Uma onda mais forte é o passaporte para a realidade. Abro os olhos assustada. Como me afastei da praia! Outra onda igualmente violenta alerta-me para o perigo iminente.
Agora estou sobre as pedras, que estando submersas pela cheia da maré, esconderam-se de mim, negando-se a delimitarem o território proibido.
Concentro toda minha força nas braçadas. Preciso sair da arrebentação. Sinto-me agora como uma guerreira solitária contra um poderoso exército marinho. Preciso voltar para a terra, mas o mar me quer nas suas entranhas.
Sou sugada pela onda que se forma. Ela enche, quebra e agora sou espuma. Bolhas translúcidas e multicoloridas bailam nas minhas retinas. Invadem, meus olhos, meus ouvidos, minha boca, meu nariz.
Agonia , terror!
Terror? Como, terror?
Estou no meu mar. Aquele que sempre me acolheu. Que sempre me fez sentir parte integrante de seu todo. Por que terror?
Uma paradoxal sensação de leveza e peso me confunde os sentidos, depois percebo: quanto mais pesado meu corpo se faz, mas leve eu me sinto.
Afundo e flutuo. Como?
Olho meu corpo, exausto de tanto debater-se, finalmente sucumbir aos braços do mar, e num ato final, deixar-se possuir. E que braços macios, calorosos, aconchegantes.
Agora não há mais medo. Não há mais agonia, nem terror. Só prazer. Prazer em sentir-se liberta, flutuar.
Volatizar.
“ Agora nascida estrela
algas , recife e coral,
não me contentam areias
nem me prende litoral,
pedindo o vôo das gaivotas
em rumos desconhecidos
sonhando estradas marinhas
compondo sete oceanos
para neles navegar
sou como o sal das salinas
pois fui nascida no mar
Que mundos não conhecidos
bebereis nos sete mares?
Que fantasmas soluçantes
terei de então consolar
ó brisas, ó tempestades
cantai bem alto, cantai
para embalar leves sonhos
cometidos em alto mar
Deixei meus olhos dormindo
nas mãos de musgos medonhos
enquanto em busca de estrelas
converti-me em brancas ilhas
beijadas por sóis distantes,
pelo ímpeto das ondas
vestindo-me tule e neve
para surpresa das bodas
da minha alma irrequieta
com a alma triste do mar
Irei brincar com fantasmas
os governantes do mar
falarei língua das ondas,
cantarei canções marujas
escreverei meus poemas
nos lábios dos caramujos:
levá-los-ão chuvas, ventos
aos peixes e caravelas
que brincarão de cirandas
nos recôncavos do mar
Passai marujos, passai
que não voltarei do mar:
oceânica persisto;
sou o produto deste mar
que compus nas minhas mãos
da verdura do meu sangue
das águas dos olhos meus.”
Crônica de ANA CRISTINA C. TINÔCO
(POESIA DE ZILA MAMEDE)