Vicente Serejo
Da foz do Potengi, subindo ao Norte
Por mais que os referenciais eruditos pregados na memória teimem em saltar do poema para o estranho aviso de que ali estão as vozes de Camões ou de Pessoa; por mais que o mar finito dos gregos de repente se encontre com todo esse mar sem fim que é português, a construção do longo poema de Antoniel Campos se ergue sobre seus próprios alicerces não bastassem as pedras da sustentação histórica que lhe confere o historiador Olavo de Medeiros Filho.
É possível que nem coubesse aqui uma discussão em torno dos nossos retratos poéticos de agora. Da comparação de suas cores e dos seus relevos. A Natal mais antiga do poeta Ferreira Itajubá ou a Natal mais lírica e mais melosa da Serenata do Pescador, de Othoniel Menezes. Mais do que a extensão e o fôlego, este longo poema é a celebração da capacidade poética do seu autor na fixação do homem natalense na sua normalidade humana de quatrocentos anos.
Sem prender-se a um começo que necessária e cronologicamente viesse do antes da cidade, a Natal do poeta quebra intencionalmente a solidão da paisagem virgem e silvestre e se faz como num milagre de composição. De repente o vento, o homem, a duna, o rio, a fortaleza, o mar, as gamboas, o casario...e a cidade surgindo, traço a traço, como a erguer-se do seu próprio mistério de não ter sido povoado ou vila porque já nasceu cidade.
À medida que os olhos percorriam as palavras, as personagens e os fatos, e tudo ganhava relevo por entre versos e estrofes nos contrafortes dos ritmos sonantes e dissonantes, todo um grandioso espetáculo parecia se montar com seus heróis, santos e mártires. E era como se os olhos dissessem: a solidão do verde, ali. A calma humilde do azul, mais pra lá. O amarelo ardente do sol mais pro alto. Lá em cima, o vermelho vivo das pobres glórias provincianas.
Um mural de tudo. Um tudo feito de todas as coisas sagradas e profanas. Dos épicos e dos líricos. Dos santos e dos loucos. Dos heróis e dos vilões. Mas todos encantados por uma aura poética que salva e condena, perdoa e fere, morde e sopra. O lirismo que foge dos antigos nomes dos velhos lugares da cidade: "A Rua Grande e o antigo casario" ..."Caminho de beber, Rua do Meio, o Porto da Redinha,/ o Outeiro...", as "águas potengis".
Humilde, e por isso mesmo poeta, Antoniel , como se estivesse à sombra das velhas árvores da praça André de Albuquerque, procurando a cidade antiga, confessa:
"Tomai da minha mão que, humildemente,
Talento sei faltar nesta empreitada,
o verso que me acorre é indigente,
à Frente da tua página afamada.".
E pede:
"Dizei do que passou que, prontamente,
Na lira cantarei tua jornada,
Senhores Arquitetos deste solo,
Tal dádiva, no verso, vos imploro..."
E como se fossem indispensáveis para cumprir-se uma jornada marinheira, pouco antes da partida para sua circunavegação poética, chama os poetas da cidade, pois é com eles que espera voltar às margens do rio:
Mas venham sobretudo os poetas!
Antídio, Açucena e Edinor,
Ferreira Itajubá – musas secretas!
Gothardo e Auta de Souza – a mesma dor...
Henrique e Walflan – versos de ascetas!
João Lins Caldas – delírio e andor...
"Fernandes, balançai REDE nos ares!
Mamede, enxuga o pranto desses mares..."
E depois de tudo, ao descansar os olhos sobre suas águas potengis, todos vão chegando para a celebração final na praça onde a cidade foi fundada, numa mistura mágica das eras e dos anos, dos dias e dos séculos, numa narrativa-convocação em 44 versos.
Ali estão, diante da Matriz tocando as Trindades do anoitecer todas as figuras de nossa História. De Jerônimo a André, de Colaço a Manuel, de Cascudo a Gothardo Neto. Jorge Fernandes vem descendo a Rua da Palha, lá vão chegando as mocinhas do Tirol e de Petrópolis. Rifault, Padre Miguelinho, Del Prete, Exupèry e Jean Mermoz. O Graff Zeppelin chega boiando no mar azul do céu saudando Severo e Sachet e tudo é festa com Boi Calemba, Fandango, Lapinha e Bambelô.
De longe, com seus olhos calmos, os padres Soveral e João Maria. Os Reis Magos, índios, negros, feiticeiros. Num canto, com sua cabeleira leonina tocada pelos ventos, na elegância das brancas polainas e dos alvos colarinhos engomados, Cascudo deixa o bronze e desce do pedestal olhando as horas no velho relógio da torre da Mariz.
Natalenses, o longo poema de Antoniel Campos, é a opereta de toda essa gente nascida de índios, brancos e negros, entre o mar e o sertão, feita do sangue e do amor de pescadores e de vaqueiros.
Redinha, no dezembro glorioso da Natal quatro vezes secular.