sábado, outubro 08, 2005

SENHOR, O MAR JÁ SE CUMPRIU

Marcus Ottoni


“Questiono a oportunidade de se fazer isso agora, na improvisação, quando existem questões mais prioritárias. É como se já tivéssemos resolvido outras formas de violência, como o desemprego e a fome.”
Caetano Veloso, sobre o referendo da comercialização de armas.



Clara Nunes

PRATODOMUNDO
II FESTIVAL GASTRONÔMICO DO BECO DA LAMA
15, 22, 29 DE OUTUBRO
05 DE NOVEMBRO DE 2005


Desarmar o cidadão,
é o mermo, faça fé,
que colocar o Ricardão,
prá pastorar sua muié!...

Bob Motta




Mentiras do rio...

Mentiras do rio e do revólver. Referendo e greve de fome. Tudo girando em torno de uma monumental mentira. Ou um monumento repartido em várias mentiras.

Vejamos. Quem diz que tirar água do São Francisco vai matar o rio, mente. E sabe que mente. Até porque nenhum rio consegue viver com todas as suas águas. E por isso as despeja no mar. “O rio nunca é o mesmo. É sempre outro o rio que passa”. Quem diz que a transposição das águas do São Francisco será a redenção do Nordeste setentrional, também mente. E sabe que mente. Fosse verdade essa “promessa”, as cidades ribeirinhas, de rios perenes, não seriam pobres. Colégio e Propriá, Juazeiro e Petrolina, seriam paraísos do Nordeste. E todos sabemos que não é verdade.

Essas são as mentiras do rio. E no meio de tudo, muita demagogia. Demagogia sacra e profana. O bispo deveria fazer greve de sede e não de fome. Porque de fome já vivem em greve os seus paroquianos. Fome de seculares anos.

Outra ausência de verdade é o referendo. Maconha é proibida? É. Cocaína é proibida? É. Metralhadora é proibida? É. Fuzil é proibido? É. Falta maconha? Não. Falta cocaína? Não. Falta metralhadora? Não. Falta fuzil? Não. Quem garante que o revólver proibido desaparecerá? Esse referendo é só do revólver. Não inclui faca nem bazuca.

Rio, revólver e muita mentirstrong

Vamos fazer um referendo proibindo a mentira política. A pergunta será a seguinte. “Você é a favor da abolição da mentira nas campanhas políticas”? Você responde que é a favor. Adianta? Adianta não. Os políticos dirão que abolição não é o mesmo que extinção. E aí faremos novo referendo.

Isso é que é Democracia direta. Diretamente ineficaz. Viva o Barão de Itararé. Como morrer se não temos onde cair mortos? Quem vai guardar os revólveres do mercado da Quatro? E os do Planalto. E de Mãe Luíza?

Quero ver o bandido, na frente das câmeras, responder ao repórter que lhe pergunta onde adquiriu o revólver: “Esse aí, senhor, eu comprei no referendo!”

François Silvestre
Tribuna do Norte, 08/10/2005




ESSE VERBETE DE REFERÊNCIA

(ou: porque fratura não se expõe impunemente)

não era Donne em versos indo para o leito,
tampouco Caetano ali cantava,
mas Ela, misturando os dois, dizendo:
"quando ele sobre mim e dentro dança lento",
e eu, que já nem sei se lento ou não nela dançava,
sei que mais dentro (sob ou sobre?) me deixava.

ao lado a lingerie recém-comprada
e ainda não usada (olha a surpresa:
trazia entre os dentes e mais nada,
assim, só pele e poros, nua em pêlo),
ao lado, eu dizia, aquele mimo,
que a mão, à meia-luz, fiz que enxergasse,
lacei sua cintura e obediente
deixou (fez que deixou) que eu comandasse.
as ancas alternando ora espirais,
ora fluxos de um percurso sul e norte
— e ora tudo isso quando em 8.

sim, és linda e única e máxima e sem decência.
és meu verbete de referência,
disse.

e ela, de presente, a linda, fez
seu cabelo, todo ele em desalinho,
por campana em meu rosto:
a vida era ali dentro: cheiro e gosto.
o mundo era lá fora: burburinho.

poemas me acorriam, delirava.
sonetos nascituros declamava:

"amemo-nos do amor que mata e vive,
sem meias concessões, de tudo ou nada.
do amor do mais amado e mais amada,
que nunca, sei, tiveste e nem eu tive."

mas, não.
ali era o poema em carne viva.
ali qualquer palavra soçobrava.
teus peitos, minha boca, teus cabelos,
meu corpo inteiro entregue, tuas coxas.

amei quando disseste erguendo o queixo:
pu...
(verbete meu e referência minha,
fratura não se expõe impunemente.)
...taquepariu.

então te chamo, abraço e beijo
e em mim tu dormes.

Antoniel Campos




PARA SUBIR FOI PRECISO DESCER

Antes mesmo de chegar o verão, é um desassossego. Sofrem todos. Sofre quem ama a casa de campo; e mais ainda sofre quem ama a casa de praia. É o meu caso. A cidadania me permite dispor de uma residência de verão, situada na avenida atlântica, guardada por coqueiros, olhando o parracho seco. E nela, a cada ano, tradicionalmente passo todo o mês de janeiro.

O sofrimento chega quando, em outubro/novembro, tenho de rever as instalações, atualizar a manutenção dos aparelhos, selecionar os compact disks que escutarei nos alpendres da ampla casa, separar as garrafas do singelo Old Parr, envelhecido até no nome, que ali beberei.

Pena estar sendo abandonado pelo vizinho de condomínio, bom companheiro de degustação. Domingo último, por sinal, me submeti a parte dessa dolorosa rotina. Uma permanência tão penosa como a travessia. Foi assim que reencontrei o talento de Clara Nunes. Faixa dez. Lama por título.

De lama tem sido, refleti desde então, o mar onde flutua uma nau. A nau dos corruptos, cuja tripulação é formada por bizarras criaturas, sob o comando de um barbudo capitão, e de cujas faces pendem as mais diversas máscaras. A do político, do assessor, do jornalista, do metalúrgico, do dirigente sindical, do empresário, do banqueiro, do policial, do juiz, do marqueteiro, do governante. É a respeito dessa gente que fala a canção de Clara Guerreira. Todo mundo quer subir. A concepção da vida admite. Ainda mais quando a subida tem o céu por limite.

Infelizmente, a voz de Clara não parece soar clara aos ouvidos dessas pessoas. Elas, buscando atingir o mais alto degrau da fama, do poder ou do dinheiro, pouco ou nada se importam com a ética. Menos ainda se importam com o patrimônio público. E com as expectativas do povo. Seu esforço é, tantas vezes, coroado de êxito. Um êxito aparente, tal qual o obtido pelo sujeito que ganha a disputa do “pau-de-sebo”. Eles sobem, sim. Chegam ao topo. Arrancam o prêmio. Mas a subida lhes cobra o preço de tantas descidas. Tomara lhes cobre ainda um preço muito mais elevado.

Deus me livre, porém, de chorar o lamento de Clara Mineira. O que eu quero é celebrar a inocência da grande massa. Homens e mulheres do bem. Homens e mulheres de bem. Todos armados com a esperança do futuro. Todas armadas com o amor do presente. Esperança e amor com que temperam o repúdio, quase nojo, à lama e aos seus habitantes.

Livre-me também Deus de embarcar nessa nau. Dela não pretendo ir a bordo, pois fazê-lo seria não navegar. E navegar é preciso. Como preciso é conhecer meu rumo, se quiser navegar. Meu rumo, já o indicou Lulu Santos, não é nessa direção.

A propósito, quanto a mim, o roqueiro em pauta não entra em pauta, sendo o assunto predileção musical. Daí, o aviso: no janeiro vindouro darei preferência aos fados de Dulce Pontes. Quem sabe assim os fados da minha pátria não seguirão aqueles da minha língua. E eu saborearei canções do mar, na companhia do Poeta. A ele, como em prece cívica, direi: Senhor, o mar já se cumpriu. Falta agora cumprir-se o Brasil.

Taumaturgo Rocha

por Alma do Beco | 7:37 AM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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