sábado, setembro 17, 2005

O INÍCIO DA SOLIDÃO

Marcus Ottoni


“Nenhum contratante nutre sentimentos pelos mercenários.”
Bruno Lima Rocha



BATE-PAPO

Duas vozes falam,
provocando um silêncio estrondoso
de fazer arrepiar,
de ensurdecer

Duas vozes calam
Provocando um diálogo constante
De fazer correr adrenalina
Assim sem querer

Deborah Milgram




Dorian e a chegada da solidão

"A solidão se inicia quando os amigos verdadeiros se vão."

Nos tempos do jornal Última Hora éramos jovens, 20 e poucos anos, presunçosos, sonhadores, despreocupados, atrevidos e felizes. Achávamos que pertencíamos a uma casta que mudava a cara da mídia. Era um prazer sentar-se no banco da frente dos jipes azuis e circular, ser jornalista conferia status, provocava inveja. Mas dávamos duro. Trabalhar com Samuel Wainer, um mito, era um prazer, com um preço. Ganhávamos pouco. A UH pagava mal, estava em crise provocada pela polêmica Carlos Lacerda x Samuel. Quando a edição era fechada, às 11 horas da noite, um grupo saía para jantar e fazer a via-sacra dos bares, boates, táxi-dancings, botecos, terminando na Praça da República, às 5 da manhã.

Podia-se sentar ali tranqüilamente e até dormir nos bancos. Nossa turminha: Dorian Jorge Freire, redator principal do jornal, colunista de destaque que barbarizava com a sua Revista dos Jornais. Dorian foi um pioneiro, ombusdman da imprensa, quando essa palavra ainda não existia. Luís Thomazzi, setorista da Assembléia Legislativa de São Paulo, cheio de fontes de fontes e de informantes. David Auerbach, que assinava uma coluna política como Davi Barreto. Domingo Gioia (o pai dele tinha sido um pastor famoso na igreja Batista), repórter. José Roberto Penna, repórter, depois foi para a revista Quatro Rodas e se celebrizou pelos roteiros detalhados das estradas brasileiras, uma inovação na época. Afonso de Souza, repórter político, ficou conhecido depois que se plantou por uma semana na frente da casa de Carvalho Pinto até ele conceder uma entrevista que negava. Arley Pereira, do esporte, especialista em MPB e em teatro de revista.

Eventualmente, agregavam-se o Moracy Du Val, repórter, crítico e ator de teatro; o José Eugênio Soares, hoje Jô Soares, que fazia a coluna de teatro e televisão e dirigia um Gordini; o mistério era como ele conseguia entrar no minicarro; o boêmio Otávio, dos mais cáusticos cartunistas da imprensa (uma vez, desenhou Nossa Senhora Aparecida com a cara de Pelé e a Cúria quase fechou o jornal), Gilberto de Pierro, colunista político, da noite e da sociedade, assim como Mário Glauco Patti, especialista em automóveis que chegou a diretor do Autódromo de Interlagos. Thomazzi, Penna, Afonsinho, Gioia e Otávio já morreram..

Este é um curto trecho do making of do meu primeiro livro Depois do Sol, publicado em 1965, e que terá agora segunda edição. Quarenta anos depois! O trecho estava pronto, em prova, quando recebi a notícia vinda de Mossoró. Dorian Jorge Freire morreu no fim de agosto.

Entre os seus pedidos, feitos em longa agonia, estava um para Maria Cândida, mulher dele. Que fosse ela a me ligar e transmitir a notícia!. Havia naquele pedido do Dorian uma ironia, uma brincadeira, a última comigo. Porque desde que ele se foi de São Paulo era eu quem ligava para transmitir notícias sobre a turma. Quem fazia o que, quem casava, ou descasava, tinha filhos e assim por diante. Claro que sempre fui eu a dar a notícia da morte de cada um dos amigos. Conversava com ele por meio da mulher, já não dava para entender a sua fala.

Um dia, ele brincou: “Tem vezes que você me liga, só para dizer quem morreu! Parece o arauto da morte. Maria Cândida, semanas atrás, não me encontrou, eu estava no interior do Rio Grande do Sul e não tenho celular. O filho me encontrou, dias depois para comunicar: Dorian se foi! Naqueles anos de jornal, todas as noites, Dorian saía de sua mesa com os jornais debaixo do braço, passava por mim, me via escrevendo. Eu usava a máquina do jornal, não tinha dinheiro para comprar uma. Ele sabia que eu sonhava escrever romances, contos e batia nas minhas costas: “Pensa que vai ser Machado de Assis? Graciliano Ramos?” Ria e saíamos juntos. Eu ficava irritadíssimo e pensava: “Ele vai ver!” Trinta anos mais tarde, ele me recebeu em Natal, Rio Grande do Norte.

Sua primeira frase: “Não chegou a Graciliano, nem a Machado, mas caminhou direito ao seu modo. Eu queria te provocar, te deixar com raiva, para que você aceitasse o desafio. Fez carreira para me desmentir?” Rimos, nos abraçamos.

Ele já tinha sofrido seu primeiro AVC. De toda a equipe do jornal, Dorian era quem mais lia. Um erudito sem pernosticismo, um bem informado, lúcido. Sua coluna Revista dos Jornais era a revisão diária do que acontecia na imprensa; ele se antecipou décadas ao inventar o ombudsman. Não tinha contemplação com o Estadão, todopoderoso, nosso rival, a quem ele mais combatia, não aceitava a linha do jornal.

Dorian era íntegro. Católico, admirava Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Ataíde, como quem manteve correspondência. Lia Charles Mourras, François Mauriac e Paul Claudel. Tinha fé, mas não era carola. Um dia, decepcionado com a política, com a traição de colegas de um jornal que ele ajudou a fundar e teve curta duração - o jornal foi massacrado pela ditadura - vendo as portas fechadas e a cidade cada vez mais violenta, inviável, a qualidade de vida se esvaindo, Dorian teve um gesto de coragem. Voltou à cidade natal, Mossoró. Teve problemas imensos de saúde e nos últimos anos viveu à sombra de sucessivos AVCs. Com um dedo só, penosamente, manteve uma coluna muito lida no jornal local.

Não destilava amargura, era contemplativo. Publicou dois livros, Dias de Domingo e Veredas do Meu Caminho. Foi eleito para a Academia Norte-rio-grandense de Letras, ali recebido com pompa e júbilo. Leu todos os meus livros e dos 27 que escrevi gostou apenas de meia dúzia. Era rígido, ríspido, autêntico, a amizade não afetava o julgamento crítico. Melhor assim, sabia dizer a verdade, essa coisa tão difícil, quase impossível no Brasil de hoje. Nenhuma hipocrisia. Muita lealdade. Tinha orgulho de meus livros, como fosse dele. Devo a Dorian a indicação de leituras fundamentais e o exemplo de resignação e força. Em nenhum momento ele se entregou, se queixou. Nenhuma lamúria em suas cartas e artigos redigidos com enorme esforço. Nenhuma autopiedade. Dorian se foi, o grupo de UH se reduziu. E de repente constato que não tenho nenhuma fotografia ao lado de um amigo tão chegado. Fico com as memórias, enquanto eu tiver lembranças. A Praça da Redenção onde ele morava se chama hoje Praça Dorian Jorge Freire. A solidão se inicia quando os amigos verdadeiros se vão.

Ignácio de Loyola Brandão

por Alma do Beco | 1:42 PM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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