sábado, maio 28, 2005

O PRIMEIRO BRASILEIRO 3



Das dunas, os índios observaram em silêncio os dois homens se afastarem. Cercado de três guerreiros e cinco mulheres, o chefe desceu as areias e encaminhou-se para o lugar onde estavam depositadas as oferendas portuguesas. Enquanto as mulheres se divertiam com o que viam e pegavam, os guerreiros, com arcos em posição de ataque, vigiavam os visitantes. O chefe fez sinal para o alto da duna e de lá desceram mais mulheres para levar os presentes. Deixaram no lugar só a esteira e subiram, todos, ao topo da duna, perdendo-se de vista, por um bom tempo, na floresta.
João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes julgou ser aquela uma atitude amistosa: os silvícolas receberam os presentes e o chefe até os havia salvo de uma tentativa de morte. À tarde, os índios voltaram a ocupar o topo da duna. Mas não desceram à praia. Como a ordem do comandante era a de que só voltassem após o contato ou em caso de perigo de vida, João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes resolveu pernoitar ali mesmo na praia. Pediu ao degredado que o ajudasse a trazer o barco para terra, e fizeram uma fogueira que os protegeria contra animais e o frio da noite. Enquanto um dormia, o outro vigiava, combinou com o degredado a quem coube o primeiro repouso.
Tão logo este pegou no sono, João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes, tudo levando - menos o barco, afastou-se do local, devagar, silenciosamente, beirando as águas que chegavam, mansas, à praia escura, a lua encoberta por nuvens pesadas a anunciar chuva.
Duzentos metros adiante, ele resolveu adentrar a mata. Sabia que os índios estariam vigiando, mas a escuridão seria amiga naquela hora. Encobriu seus apetrechos com folhas secas, subiu numa árvore, sentou em um de seus troncos e a ele amarrou-se. Os índios viram-no afastar-se da fogueira, mas nada fizeram, certos de que logo voltaria. E assim João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes perdeu-se da vista dos Potiguares.
O degredado, em seu sono pesado, sonhos de liberdade próxima, não se apercebeu, três horas depois, quando os índios dele acercaram-se e, com uma só flechada no coração, deram cabo de sua vida. Das embarcações, nada se via, a não ser o brilho da fogueira queimando na praia, denunciando a presença portuguesa em terras de Santa Cruz. Mais próximo, o medo a afugentar-lhe o sono, João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes a tudo assistiu imóvel, preso ao tronco que ali o manteria seguro caso dormisse.
Os índios carregaram o cadáver do degredado duna acima, levando, também, o barco que ficara na praia, longe das águas, a salvo da subida da maré. A indiada, intrigada com o sumiço do outro visitante, recebeu ordens do chefe para caçá-lo naquela mesma noite. Queria-o vivo, pois poderia servir de troca caso algum dos seus caísse prisioneiro daqueles homens estranhos, montados em canoas gigantes. Mas foi em vão a busca da indiada. João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes havia se escondido onde os nativos, pelo menos naquela noite, não poderiam percebê-lo. O desaparecimento intrigou o chefe indígena, que irritou-se ao desconforto de noite sem sono.
Aos primeiros raios de sol da manhã, o português se desamarrou da árvore e a desceu cauteloso, os ouvidos à espreita de qualquer ruído. Ele dormira em frondoso cajueiro, àquela época sem nenhum fruto, mas apreciou sua beleza e reparou em suas folhas largas, cheirosas, um cheiro estranho que jamais experimentara. Ficaria por ali. Queria ter a certeza da partida da esquadra, dali a quatro dias, prazo combinado com o comandante Gaspar de Lemos. Teria de se acautelar contra os índios e perigos da floresta, seus animais desconhecidos, os insetos peçonhentos, as cobras. Acordou com o rosto todo picado por insetos, muriçocas e maruins que o infernizaram naquela noite. O resto do corpo, bem vestido em panos grossos, botas que lhe encobriam pés e pernas, nada padecera, a não ser o incômodo da posição, coisa de menor importância diante de problemas maiores.
A indiada amanheceu na praia, no local onde ainda permanecia, presa por pedras, a esteira deixada com as oferendas. O corpo do degredado morto servira de alimentação àqueles índios canibais, fora churrascado naquela mesma noite, numa grande fogueira, e devorado em pouco tempo, por muitos dos guerreiros da tribo. Potiassu, o chefe, comera o primeiro pedaço, certo de que assim fazendo, toda ciência daquele homem transferir-se-ia para si, como para todos que também o comessem.
Das embarcações fundeadas, os homens estranhavam o sumiço dos portugueses. A fogueira ainda queimava na beira-mar, mas sinal algum havia ali dos homens pernoitados. Nem do barco. Gaspar de Lemos julgou-os terem sido apreendidos pelos silvícolas, que já estavam às dezenas em derredor do marco, trazendo oferendas e a colocá-las na mesma esteira usada pelos enviados: frutos, animais abatidos, cocares, redes, ornamentos de penas coloridas, tacapes, arcos e flechas. O comandante estranhava aquela situação. Acreditava na captura dos seus homens pelos índios, mas julgava-os vivos. Esperaria os acontecimentos.

Eduardo Alexandre

por Alma do Beco | 9:15 AM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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