Das dunas, os índios observaram em silêncio os dois homens se afastarem. Cercado de três guerreiros e cinco mulheres, o chefe desceu as areias e encaminhou-se para o lugar onde estavam depositadas as oferendas portuguesas. Enquanto as mulheres se divertiam com o que viam e pegavam, os guerreiros, com arcos em posição de ataque, vigiavam os visitantes. O chefe fez sinal para o alto da duna e de lá desceram mais mulheres para levar os presentes. Deixaram no lugar só a esteira e subiram, todos, ao topo da duna, perdendo-se de vista, por um bom tempo, na floresta.
João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes julgou ser aquela uma atitude amistosa: os silvícolas receberam os presentes e o chefe até os havia salvo de uma tentativa de morte. À tarde, os índios voltaram a ocupar o topo da duna. Mas não desceram à praia. Como a ordem do comandante era a de que só voltassem após o contato ou em caso de perigo de vida, João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes resolveu pernoitar ali mesmo na praia. Pediu ao degredado que o ajudasse a trazer o barco para terra, e fizeram uma fogueira que os protegeria contra animais e o frio da noite. Enquanto um dormia, o outro vigiava, combinou com o degredado a quem coube o primeiro repouso.
Tão logo este pegou no sono, João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes, tudo levando - menos o barco, afastou-se do local, devagar, silenciosamente, beirando as águas que chegavam, mansas, à praia escura, a lua encoberta por nuvens pesadas a anunciar chuva.
Duzentos metros adiante, ele resolveu adentrar a mata. Sabia que os índios estariam vigiando, mas a escuridão seria amiga naquela hora. Encobriu seus apetrechos com folhas secas, subiu numa árvore, sentou em um de seus troncos e a ele amarrou-se. Os índios viram-no afastar-se da fogueira, mas nada fizeram, certos de que logo voltaria. E assim João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes perdeu-se da vista dos Potiguares.
O degredado, em seu sono pesado, sonhos de liberdade próxima, não se apercebeu, três horas depois, quando os índios dele acercaram-se e, com uma só flechada no coração, deram cabo de sua vida. Das embarcações, nada se via, a não ser o brilho da fogueira queimando na praia, denunciando a presença portuguesa em terras de Santa Cruz. Mais próximo, o medo a afugentar-lhe o sono, João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes a tudo assistiu imóvel, preso ao tronco que ali o manteria seguro caso dormisse.
Os índios carregaram o cadáver do degredado duna acima, levando, também, o barco que ficara na praia, longe das águas, a salvo da subida da maré. A indiada, intrigada com o sumiço do outro visitante, recebeu ordens do chefe para caçá-lo naquela mesma noite. Queria-o vivo, pois poderia servir de troca caso algum dos seus caísse prisioneiro daqueles homens estranhos, montados em canoas gigantes. Mas foi em vão a busca da indiada. João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes havia se escondido onde os nativos, pelo menos naquela noite, não poderiam percebê-lo. O desaparecimento intrigou o chefe indígena, que irritou-se ao desconforto de noite sem sono.
Aos primeiros raios de sol da manhã, o português se desamarrou da árvore e a desceu cauteloso, os ouvidos à espreita de qualquer ruído. Ele dormira em frondoso cajueiro, àquela época sem nenhum fruto, mas apreciou sua beleza e reparou em suas folhas largas, cheirosas, um cheiro estranho que jamais experimentara. Ficaria por ali. Queria ter a certeza da partida da esquadra, dali a quatro dias, prazo combinado com o comandante Gaspar de Lemos. Teria de se acautelar contra os índios e perigos da floresta, seus animais desconhecidos, os insetos peçonhentos, as cobras. Acordou com o rosto todo picado por insetos, muriçocas e maruins que o infernizaram naquela noite. O resto do corpo, bem vestido em panos grossos, botas que lhe encobriam pés e pernas, nada padecera, a não ser o incômodo da posição, coisa de menor importância diante de problemas maiores.
A indiada amanheceu na praia, no local onde ainda permanecia, presa por pedras, a esteira deixada com as oferendas. O corpo do degredado morto servira de alimentação àqueles índios canibais, fora churrascado naquela mesma noite, numa grande fogueira, e devorado em pouco tempo, por muitos dos guerreiros da tribo. Potiassu, o chefe, comera o primeiro pedaço, certo de que assim fazendo, toda ciência daquele homem transferir-se-ia para si, como para todos que também o comessem.
Das embarcações fundeadas, os homens estranhavam o sumiço dos portugueses. A fogueira ainda queimava na beira-mar, mas sinal algum havia ali dos homens pernoitados. Nem do barco. Gaspar de Lemos julgou-os terem sido apreendidos pelos silvícolas, que já estavam às dezenas em derredor do marco, trazendo oferendas e a colocá-las na mesma esteira usada pelos enviados: frutos, animais abatidos, cocares, redes, ornamentos de penas coloridas, tacapes, arcos e flechas. O comandante estranhava aquela situação. Acreditava na captura dos seus homens pelos índios, mas julgava-os vivos. Esperaria os acontecimentos.
Eduardo Alexandre