Réplica do marco de posse da terra brasileira
no lugar onde foi chantado
As embarcações portuguesas amanheceram repletas de peixes voadores em seus conveses. Bem próximas às embarcações, duas baleias brincavam nas águas da enseada. No céu azul bem claro, nuvens de pássaros eram vistas de um lado para o outro, pássaros de todas as cores, um encantamento. Em terra, os índios, no cimo das dunas, já os aguardavam pintados de preto. Alguns pareciam dançar. O vento continuava forte, encrespando o verde das águas. Longe da praia, onde repousava o marco, dezenas de guerreiros gesticulavam, acenavam para os embarcados, como se os convidassem para o desembarque.
Gaspar de Lemos chamou seus comandantes de naus ao navio capitânia e contou de sua intenção de ir à praia, com presentes para os nativos. A tripulação, no entanto, mostrou-se temerosa, fazendo ver o risco de vida que a missão representava. João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes viu aí sua grande chance de permanecer em terra. Correria o risco de ser morto pela indiada, mas não tinha medo da morte: o sonho de riqueza fazia-o cego ao perigo. Apresentou-se, então, como voluntário para a missão. Como era tripulante da nau comandada por Américo Vespúcio, este fez objeção.
— Melhor mandar degredados.
Como João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes insistia em participar da missão, Gaspar de Lemos, embevecido diante da coragem demonstrada pelo marujo, decerto a servir de exemplo ao restante dos comandados, consentiu finalmente com a ida do mancebo a terra. Mandou retirar dos porões do navio o degredado de maior pena e condenou-o à missão. Se voltasse, seria um homem livre. O degredado, no entanto, recusou-se, preferindo morte por afogamento ou qualquer outra, a ter com aqueles selvagens, quem sabe comedores de carne humana.
O próprio Gaspar de Lemos desceu aos porões da nau. Conversou com os apenados e por fim um deles concordou com a proposta do comandante. Se voltasse, seria um homem livre: acompanharia, mesmo que desarmado, o marujo de 22 anos em sua missão. João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes estaria provido do que havia abordo de melhor em armamentos e apetrechos de sobrevivência, comida, munição farta, facas e facões. Era a chance que esperava. Sabia, Portugal mandaria outras esquadras àquela terra, e depois que tivesse em mãos os tesouros que com certeza encontraria, voltaria rico para uma vida confortável em Paris, onde pretendia viver.
Preparado o barco com as oferendas portuguesas, peças de tecido, roupas, chapéus, botas, panelas, espelhos, estatuetas, pentes, uma série de bugigangas, os dois lusitanos rumaram para a praia. Deviam tentar fazer contato com os nativos, não deviam ir longe, adentrar-se ao litoral, e teriam o prazo de cinco dias para a missão. Se não voltassem nesse prazo, a esquadra seguiria viagem. Gaspar de Lemos estava certo de que a missão seria bem sucedida, afinal, quando do aportamento de Cabral na viagem anterior, tinham encontrado índios pacíficos que ficaram satisfeitos com a troca de presentes e até os levaram às suas aldeias, chegando a oferecer suas mulheres à tripulação.
Quando os índios perceberam o pequeno barco dirigindo-se para a praia, voltaram ao alvoroço. Muitos correram, descendo as dunas, empunhando arcos e apontando suas flexas em direção aos portugueses. João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes, nessa hora, tremeu. Viu algumas flechas caírem bem próximas à embarcação que os conduzia e chegou a remar em sentido contrário ao que se propusera. Longe do alcance das armas indígenas, deixou-se a contemplar aquele inusitado cenário. Das dunas, desceu um guerreiro forte, mais alto que os demais, com um arranjo de penas na cabeça, e comandou a volta da indiada para as dunas, como se a demonstrar querer a visita.
João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes tomou coragem e experimentou rumar para a praia. Viu quando os índios iniciaram imensa gritaria para depois dominar o silêncio, imposto pelo comando daquele que deveria ser o chefe de todos eles. Aos poucos, foi se aproximando da praia, enquanto a indiada, no alto das dunas, aguardava o desembarque em silêncio. Por um bom tempo, o mancebo português vacilou. Os índios estavam distantes, mas aquilo poderia ser uma cilada. Por fim, mais certo da reação satisfatória dos nativos, desembarcou.
Próximo ao marco chantado na véspera, sobre uma grande esteira de fibras vegetais, colocou as oferendas do seu comandante, dispondo-as cuidadosamente. Enquanto ele e o degredado companheiro de missão preparavam o local para as possíveis trocas, um dos índios, gritando, parecendo possesso, disparou em direção à praia com uma lança na mão. O índio que parecia o chefe tomou seu arco, armou-o com uma flecha e disparou contra o insubordinado, atingindo-o na coxa direita, por trás, fazendo-o cair um pouco adiante, tingindo de vermelho aquelas areias amarelo-pálidas do Novo Mundo.
Duas mulheres nativas, obedecendo ao comando do chefe indígena, vieram recolher o homem caído, acalmando os nervos dos portugueses de terra. De onde estavam, fundeados na enseada, os ocupantes da frota portuguesa nada perceberam, impedidos que estavam pela vegetação que aqui e ali coloria de verde as dunas da praia que viria a ser conhecida, séculos depois, como Praia do Marco. João Antônio Cícero Sebastião José Silva Fernandes, a mão tremendo, já empunhava a garrucha de dois canos, pronto para o enfrentamento. Aliviado, continuou na tarefa das oferendas e, ao terminá-la, afastou-se duzentos metros do local, cuidando de levar consigo o barco.
Eduardo Alexandre