DELÍCIA CONFEITARIA
NOVA FASE (AVANT PREMIÈRE)
MEMORIALISTA DA BOEMIA
Memorialista, é? O Pedro Nava de Natal!
Carlos Lima, editor e amigo — mas um safadão de marca maior, ao tomar conhecimento da última comparação, maliciou:
— Cuidado para não adquirir o vício do grande mineiro e morrer como ele...
Quem morreu? Pedro Nava? Quando? Enterraram uns pobres restos humanos. O Pedro Nava está aí, mais vivo do que nunca, soberbo no “Baú de Ossos”, magnífico no “Balão Cativo”, excelente no “Chão de Ferro”, “Beira-mar” e “Galo das Trevas”, mas me parecendo meio cansado em “Círio Perfeito”. Mas eu vou dizer isto? Pra Ney Leandro soltar todos os cães de sua matilha e me esculhambar como esculhamba a VARIG toda sexta-feira? Por falar nisto, Breno Pahim, meu amigo, resolve o caso de Ney! Que valem uns míseros dólares para uma companhia como a VARIG? Não me force, meu fraterno irmão, a viajar pela Transbrasil ou VASP.
COMO COMEÇOU
— Memorialista, é?
—Tudo começou quando, na abertura da Nova Delícia, depois que, durante dois anos, o local da Confeitaria foi profanado por uma livraria e o mural de Newton Navarro encoberto por prateleiras. Menotti Del Picchia tem um personagem meio boêmio, meio intelectual que denomina bar de oásis das sombras benditas.
Pois, como ia dizendo, quando a velha turma reencontrou-se no nosso oásis, nas mesmas mesas e cadeiras, renovou-se uma idéia sempre adiada:
— E a homenagem a Olívio que a gente ficou de fazer ? No dia 30 de junho ele completa 77 anos de idade e 40 como dono de bar.
Tudo acertado, levou-se o barco à frente e este será tema da Confeitaria Delícia — Nova fase: a festa do portuga Olívio, a partir da próxima semana. Mas posso adiantar que, entre as providências tomadas, couberam-me os contatos com a imprensa. Fala com um, fala com outro, resolvi escrever uma matéria sobre a Confeitaria sob o título “Uma medalha para Olívio”, onde descrevia o ambiente, os personagens, as acontecências da velha Delícia, e trouxe para Marcos Aurélio ler e, se estivesse conforme, publicar.
O BALÃO DE ENSAIO
Com sua natural lhaneza — que puxada! —, Marcos o fez. Menino, recebi tanto abraço e palmadas às costas que tive que comprar Frixal para passar nas ditas cujas! Sim, Frixal, que sou do tempo de constipação, califon, Cafiaspirina, sabonete Eucalol e coisas que tais.
Depois, fui soltando, como balões de ensaio, umas crônicas desenvolvendo tipos e trazendo para o ilustre mestre diretor de Dois Pontos ler e — outra puxada — dignar-se publicar:
— Marcos, leia que amanhã passo para receber o seu veredictum.
Às vezes, o encontrava risonho e aprovativo. Outras, de cara amarrada e cenho cerrado. E ia logo adiantando:
— Suprimi vários tópicos. Você pensa que isto aqui é Ele & Ela pra publicarmos indecências? Temos crianças e senhoras como nossos leitores. É preciso compostura!
AS CRIANÇAS DE HOJE
As crianças de hoje sabem muito mais nome feio que eu e todos os leitores de Dois Pontos juntos e expressam-se numa linguagem desabrida e livre que só ouvindo! E as senhoras de hoje? Freqüente uma roda de casais jovens! Sai cada anedota imoral que vou te contar! E, no dito sexo frágil, encontrei as maiores incentivadoras para ir em frente. No Lions-Norte, quando presidente, encerrei uma roda de anedotas, numa noite de luar, no Iate, após Edna Câmara, domadora de Severo Câmara, com aquela cara angelical que Deus lhe presenteou, contar um caso acontecido com um homem que comia demais. Eu conto, Edna? Por você, sei que teria consentimento, mas Marcos Aurélio publicar? Nunca!
O TOMADOR DE CERVEJA
— Boêmio, é?
Boêmio que só toma uma qualidade de bebida (cerveja); que vomita se botar na boca um conhaque, uma vodka; que nunca tomou cachaça, nem em beira-de-praia e em tempo de caju de conta ?
A CLASSIFICAÇÃO
José Waldenício de Sá Leitão, o rei da noite, quando da auto-apresentação no Ágape Clube, enquanto uns se anunciam professor, industrial, comerciante, médico e etc. e tal, ele inflama o peito e proclama:
— Waldenício, boêmio.
E explica: é o que realmente eu quero ser e estamos conversados. Posso ser Procurador nas horas vagas. Nas horas boas, sou boêmio.
A DEFINIÇÃO
Vicente Serejo pediu-me uma definição de boêmio. E eu escrevi mais ou menos assim:
É preciso, de início, fazer uma diferenciação entre boêmio e bebedor. Este é um inveterado, desfibrado, prisioneiro do vício. Um pobre diabo mal vestido, de idéias confusas. Bebe em ambientes sórdidos. Não trabalha, ou, se o faz, é com imperfeição. Um infeliz a caminho de uma cirrose hepática aguda.
Já o boêmio, não. É um ser inteligente, de idéias avançadas, alegre, folgazão, um papo excelente, sempre bem recebido e festejado, que trabalha e muito, porque, para transar na noite, principalmente acompanhado, é preciso ter lastro bancário. Tem os olhos de farol a iluminar essas deusas que Deus botou na terra como o nome de mulher, avançando o sinal quando de alto se notar um sorriso prometedor, mas debreando e recuando, estrategicamente, se notar que a rota não é a permitida.
Enfim, um boa vida, adorando uma boa bebida, um prato sofisticado ou regional, um ambiente que inspire momentos de êxtase espiritual e sentimental.
—Boêmio, é?
O ACERTO
Acertada a homenagem aos 77 anos de idade de Olívio, sendo que 37 como barman, para o entardecer do dia 30 de junho, data em que há sete décadas e bote-força, o deixe-que-eu chuto nascera na remota aldeia de Peruzinho — que Cascudo afirmava não existir — tomou-se a primeira providência: compor comissão para acertar detalhes e quefazeres.
A COMISSÃO
Comissão é como o professor Onofre bem dizia: é a coisa mais ineficiente e sem futuro dessa nação. Nomeiam 3, 5, 7, 10 membros e não vai para frente, nunca. Se um só não levar o barco, estamos conversados.
Pois a nossa foi exceção à regra. Às cinco e meia duma tarde/noite meio chuvosa do início de junho, os sisudos e compenetrados membros se encontraram numa mesa da Nova Delícia. Abertos os trabalhos, com uma Antarctica para Alexandre, uma Brahma para Renato do Grande Hotel (que só toma a Chopp) e um uísque para o livreiro Carlos Lima, acertou-se, em linhas gerais, do que se comporia a homenagem: coquetel, salgadinhos, inauguração do retrato do portuga, palavras de saudação pelo poeta, pintor e freqüentador de caderno Newton Navarro, agradecimento do homenageado e bebida até chegar no meio da canela.
O PRIMEIRO IMPASSE
Quando, conseguida uma Remington, estava-se confeccionando as listas de adesão, irrompe, bar a dentro, truviscado e meio, o nosso bom amigo Leão, a protestar, em altas vozes, a sua não inclusão na comissão.
— Toda festa na Confeitaria foi organizada por mim! Tomei parte em todas as comissões! Por que não nesta?
Carlos Lima, com seu olho meio-fechado de Camões, explicou, grave:
— A comissão foi escolhida pelo consenso.
Consenso! Grande termo inventado pelos novos tempos. Significa tudo e nada explica.
Depois da ofensiva intimidativa, o protestante apelou para o lado emotivo:
— Me diga, doutor! Quem foi a primeira pessoa a quem o senhor falou em homenagear Olívio?
Confirmei que havia sido ele, mas que eu não possuía poder de decisão para indicar, incluir, vetar nomes do trio organizador.
HOMEM DE PALAVRA
Quando o homem das máquinas caiu em si e viu que eram baldados apelos e argumentos, entrou de sola. Deu um murro na mesa que balançou copos e garrafas e gritou:
— Pois eu nem assino a lista, nem pago. No dia, não piso nem na Ribeira.
Homem de palavra está aí! Não assinou e não pagou. Mas, no dia, compareceu, assim como quem não quer nada, querendo, entrou firme e forte no uísque De Monge e saiu de quatro pés.
O RETRATO
A mim, fora reservada a incumbência de abordar o portuga e arrancar-lhe um retrato decente para ser ampliado.
— Fale com cuidado que o homem pode se emocionar!
Mas quem passou quarenta anos vendendo bebidas vai se emocionar com mais o quê ? Embora botando banca de que a festa era imerecida, cascavilhou numas velhas caixas e lá desencavou o retrato dum lusitano moço, forte, bem vestido, na altura dos 40 anos.
E estava certo. Era aquele o Olívio dos velhos e bons tempos. Certa vez, recusei homenagem que a FNFS elaborou, inaugurando galeria dos ex-presidentes e eu fora o primeiro e fundador. Tirar uma foto com cara de 25 anos atrás, impossível! E foto daquela época, eu não tinha mais.
A MÁQUINA DE LAVAR
Botei o retrato no bolso da camisa e larguei-me para casa. Dia seguinte, estava a vestir-me, quando dei por sua falta.
Corri pra esposa.
— Cadê a camisa que estava vestido ontem ?
— Estava suja. Botei na máquina de lavar, agora mesmo.
Entrei em pânico. Olívio prevenira de que só possuía aquela foto.
— E o retrato que estava no bolso?
— Que retrato? Não vi retrato nenhum.
Em 35 anos de vida em comum, foi a primeira vez que a mulher não fizera uma inspeção em regra nos bolsos!
— Desligue esta máquina, pelo amor de Deus!
Quando, trêmulo, o ecebi, ele estava meio diluído, quase esbranquiçado. Enxuga, passa ferro, procura fotógrafo para ver se dá jeito ! O homem deu. Quase milagre ! Mas quem o examinar bem de perto, notará, em seu todo, aqui e ali, suspeitas manchas brancas. O preço pago por ter passado quase meia hora na máquina de lavar.
AS REUNIÕES
A comissão passou a reunir-se aos fins de tardes, numa mesa da Nova Delícia, para cotejar providências e decisões a serem executadas.
Desde já, protesto veementemente contra cavilosas insinuações veiculadas à poca, de que a precípua finalidade da reunião do dia seria entregar-se a libações alcoólicas (entregar-se a libações alcoólicas é ótimo!).
É verdade, molhava-se o bico, uma cervejinha, um uísque, uma caipirinha. Surgiam pratinhos de queijo ou fígado acebolado. Mas, por esse Brasil afora, reunidos três ou quatro filhos desse gigante adormecido que façam ou pretendam fazer parte de comissão, o normal é falar da vida alheia e tomar uma!
AS ADESÕES
As adesões eram saudadas com entusiasmo.
— A turma de Galvão Mesquita aderiu! O próprio Paulo de Paula ficou de vir! Mozart Silva telefonou afirmando que, apesar de ainda considerar o portuga um ladrão descarado que aumentava nas contas, podiam contar com ele.
— Albano, o portuga do cotonifício, assinou.
E também Ferreirinha, da Casa Lux, o alto comerciante Zé Rezende (É Zé Rezende! É Zé Rezende!), Manoel Lisboa, da Codif. O negro Oméris, que estava desaparecido de há muito, reapareceu, e embora taxando de exploração a taxa de cinco cruzeiros, assinou.
Aliás, achar tudo exploração é inato de Oméris. No dia seguinte ao do lançamento das “Acontecências”, ele endereçou a Editora Clima o seguinte telegrama: “Livro realmente uma delícia Felicito escritor e editora protestando porém alto preço. A quem de direito, para providências PT Oméris”.
Ele deve ter pago nos telégrafos o preço de outro livro !
AS DECISÕES
Algumas decisões foram logo tomadas. Todas, de forma a mais democrática, como se há de notar, embora uma democracia ainda eivada de algumas interpretações, certamente produto da Era do Cavalo que vivemos nos últimos seis anos.
Carlos Lima não teve meias palavras.
— Este coquetel que vocês estão anunciando é pra inglês ver. Será servido uísque, e De Monge, que é a minha marca predileta.
Zé Alexandre não fez por menos.
— E os salgadinhos serão encomendados a Gelza que, além de ser a melhor banqueteira de Natal, é esposa de Etienne Reis, irmão de Eider. Minchou e pof!
Renato, do Grande Hotel, depois do terceiro copo, falou duro:
— E fiado, essa história de “depois eu pago”, comigo não cola. Nem Jesus Cristo, se aqui chegar, não assina fiado.
Como estão interpretando o Homem de Nazaré ultimamente de todas as formas, maneiras e posicionamentos, o futuro memorialista resolveu demonstrar alguns conhecimentos etílico-bíblicos.
— Está provado que o homem era chegado a um mé. Onde fez seu primeiro milagre? Numa festa de casamento! Meio fruviscado, vieram lhe segredar que o vinho acabara. Ele, do alto dos seus tamboretes, não se fez de rogado e disse: Não seja por isso. Deixem comigo! E transformou água em vinho. E que vinho! Grande Job, pra lá! Foi até elogiado o seu produto no Livro dos Livros. Um emérito fazedor de vinhos, ele foi.
MEU PROTESTO
Aproveito a ocasião para mandar a um certo lugar (este puritanismo de meia tigela de Marcos a não permitir que a gente escreva um nomezinho feio de vez em quando!) um certo editorialista que chamou o meu bispo Dom Costa, o meu amigo Hudson e o padre Pio, que nem conheço mas admiro (Ah, se a Maçonaria topasse!) de comunistas. Comunista e fichado na mocidade, todos nós sabemos quem foi. Woden já declinou seu nome em entrevista, com todas as letras.
A FESTA DO PORTUGA OLÍVIO III
A imprensa colaborou, decisivamente, para o sucesso que foi a festa de Olívio. Woden abriu alas e deu passagem a uma série de encômios ao português — não fosse ele um velho freqüentador e boêmio ainda hoje, destes de pegar o sol com a mão ! —, aproveitando o ensejo para profligar contra a Edilidade pelo abandono em que se encontrava (e se encontra) a velha Ribeira.
O “O” A MENOS
Cassiano também. Idem Albimar Furtado que o substituiu em seus dias de férias. Só que Albimar, alérgico ao álcool e sem muita intimidade com a militância boêmia, chamou Olívio de Lívio. Mas quem vai se importar com tamanha insignificância, um “o” a mais, um “o” a menos, numa terra em que tanta gente boa anda dando o “o” ?
O MENESTREL SEREJO
Vicente Serejo, o menestrel de “Cena Urbana”, escreveu, no dia da festa, belíssima crônica, sem dúvida, a mais bonita do ano, intitulada Milagre na Delícia, que começa assim:
“Imagino hoje, coisa das 18 horas, na Ribeira velha de guerra, o poeta Newton Navarro fazendo a saudação ao mestre Olívio Domingues. Acordando com recordações de caravelas portuguesas que um dia pintou na parede da Confeitaria Delícia. E sobretudo para ouvi-las navegar nas marolas da Ribeira palafita.
“Imagino é Olívio Domingues, os cabelos brancos fazendo espuma na beira do mar da Confeitaria Delícia. Onde as lembranças retornam nos brindes de cerveja e de conhaque no buquet de vinhos antigos que dormiram nas prateleiras, onde adormeceram os sonhos dos poetas de lá.
“Imagino José Alexandre Garcia voltando aos caminhos da Ribeira silenciosa e carregando nos bolsos as histórias e estórias das boemias. Para recolher nas mãos as lembranças, todas perdidas ao longo de tantas vidas, como se a Ribeira abrisse as portas da alma e libertasse nossas almas todas.
“Imagino Carlos Lima, um misto de boêmio e editor, o cigarro quase caindo nos lábios, o riso aberto aos amigos. É como se existisse um corredor entre a Livraria Clima e a Delícia, onde Carlos passa todas as manhãs, todas as tardes, desde que aprendeu os caminhos de lá”.
E segue, derramando poesia pura, mesmo declarando que não fora um freqüentador da casa.
O BANCÁRIO
Mas nem tudo foram flores na armação do evento. Eu mesmo, fui, um dia, abordar antigo bancário e freqüentador. Ele recebeu-me com quatro pedras na mão e olhos fuzilantes:
—Quando for para contribuir para o enterro de Olívio, me procure. Para homenagear aquele mal-educado, de maneira alguma !
Um que certamente guarda mágoas do velho barman, um crédito não concedido, uma palavra mais áspera, um tratamento à la bruta.
Quanto ao enterro, Olívio está aí, rijo e são do lombo, pronto para comemorar, no próximo mês, 78 anos. E o tal bancário é uma caixa de doença, de casa para o médico, do médico para casa. Diagnóstico da doença: ruindade congênita.
ZIL
Numa tarde em que gravemente a comissão estava reunida, chegou o pegajoso, abraçativo, adesivo e envolvente Zil, o “cérebro da família Paiva” e foi logo caronando uma cerveja e pedaços de queijos. Sem antes beijar a testa do bancário Getúlio. Espicacei Renato, do Grande Hotel.
—E Zil, paga ou não paga ?
Renato teve um momento de desânimo e ao mesmo tempo de solidariedade só encontrada nos bares:
— Zil é hors concours. Vem de qualquer jeito. É melhor considerá-lo convidado especial.
Zil, em retribuição, pegou o cabo da vassoura como se fosse microfone e cantou Tenderly.
E cantaria outras mais, se Zezito permitisse.
E eis que o dia da festa, chegou. O que será contado — finalmente ! — adiante.
A FESTA DO PORTUGA OLÍVIO — FINAL
A solenidade estava marcada para as 6:00 h. Todavia, às 5:00 h. a confeitaria já recebia a primeira carga de boêmios. Almeida, da Força e luz, também conhecido por Almeida Garret e seu braço de borracha; o primeiro presidente do Gango Tetéu, o hoje grave e circunspecto senhor Heráclio Pires Filho; Celso da Silveira, doido para iniciar os trabalhos; o poeta Navarro; os membros da comissão; o fiscal do Estado João de Brito, estreando uma barba branca, à la Hemingway.
— Vai tomar parte em algum filme ?
O ex-despachante alisou os pelos, com evidente satisfação.
— A você, eu conto. Aos demais, digo desaforo grosso. É que precisei extrair todos os dentes e a barba encobre a boca murcha e a banguela.
O BAFO
Às 6:00 h., não cabia mais ninguém. Os grupos espalhando-se pela calçada e pelos passeios, onde as mesas estavam colocadas.
Num grupo à parte, no sereno, as figuras de Júlio César Andrade, Augusto Dourado e Orlando Gadelha, alguns dos primeiros representantes de confeitos, chocolates e queijos a confiar em Olívio.
O hoje poderoso homem da SAM’S (quatrocentas toneladas por mês) contava um causo. O da partida de Borboleta chegado precisamente numa véspera de Natal, açulando os comerciantes, ávidos para faturar o produto, justamente num dia dos mais propícios.
Nervoso, Orlando Gadelha foi dos primeiros a telefonar.
— E o meu queijo, Portuga ?
Olívio tranqüilizava:
— O velho Zé Alexandre já providenciou tudo. Despachou na Alfândega, desembaraçou nas Docas e entregou os conhecimentos a Pedro Ferreira. Com recomendação para entregar primeiro a você.
Houve uma estática e a linha caiu.
O português procurou refazer a ligação e, quando conseguiu, com voz melíflua que reservava para os melhores fregueses, perguntou:
—Você sabe com quem está falando, Orlando ?
E Orlando:
— Sei. É o portuga da Confeitaria Delícia.
Olívio não acreditava.
— E como você adivinhou ?
O antigo representante respondeu em duas palavras e desligou antes de ter notícias da excelentíssima senhora sua mãe:
— Pelo bafo.
OS POETAS JOVENS
Um grupo de cabeludos intitulado jovens poetas, acompanhado de algumas mocinhas de cabelos eriçados e coxas generosamente de fora, em minúsculas saias — única parte palpável de inspirados estros —, ocupou uma mesa e pediu cerveja, em altos brados. O convencionado com Zezito, o futuro Olívio da Nova Delícia, era restringisse ao uísque De Monge e aos salgadinhos de Dona Gelza, pois estava na cara que os invasores iam terminar atrelando a despesa à conta da festa.
Mas foram atendidos, numa demonstração de apreço ao valor artístico de cada um, embora ainda inéditos. E as coxas em exposição das mesmas...
LIMARUJO
Deu seis, seis e quinze, e nada de Olívio chegar. Com o que impacientou-se o alto comerciante Limarujo, nos tempos de pobre, conhecido por Preá Barbado.
— Estou sob prescrição médica. Como beber não posso, vou embora. E saiu levando cinco pratos de canjica por conta de sua adesão à homenagem, infelizmente — esquecimento, lógico ! — não consubstanciada em metais.
OLÍVIO EM GRANDE GALA
Quase seis e meia, desce Olívio dum carro. Envergava, em grande gala, um jaquetão cor de burro quando foge, camisa social fina e flamante gravata, maravilhando a todos.
— É a sua roupa de casamentos, batizados e procissões — reconheceu um mais íntimo. Ele agora é da Irmandade dos Passos.
A FESTA
E Carlos Lima deu início à festa. Como agora descrever o discurso de Newton Navarro, se a comissão, em sua única falta imperdoável, esqueceu de providenciar gravador ? Mas o Poeta da Cidade soube dar conta de sua missão. Como sempre, aliás. Emocionando a todos, evocando, primeiramente, o poeta de além-mar, Fernando Pessoa.
Quando Olívio procurou palavras para agradecer, ele tão desembaraçado em tirar contas e anotar em cadernetas, estas lhe faltaram. Não saía nada.
E ele recorreu-se de José Alexandre, ao seu lado, para agradecer a placa.
Sim, porque existia placa a ser entregue, com dizeres que manifestavam tudo, numa síntese realmente elogiável:
OS BOÊMIOS DA RIBEIRA AGRADECEM AO PORTUGA OLÍVIO, 40 ANOS DE ALEGRE CONVIVÊNCIA.
Acrescentar mais o quê, quem é temerário ?
O RETRATO
Todos de copo na mão, o uísque correndo frouxo, os salgadinhos idem, retomado o clima de descontração que os discursos haviam interrompido por momentos, segue-se no salão principal a cerimônia de descerramento do retrato, recoberto pelas bandeiras das duas pátrias irmãs, Brasil e Portugal.
O tenente Vítor, à paisana, como já mandava o figurino dos novos tempos de abertura, descerrou a bandeira verde-amarela. Dona Elça, esposa do homenageado, a da Casa dos Bragança, a verde-rubra. Ocasião em que o radialista Ademir Ribeiro aproveitou para ler a sua crônica intitulada O Nome do Dia, com a qual homenageara o velho barman ao microfone da Rádio Poti naquele dia. Na crônica, Ademir Ribeiro reconhece que, ao longo de 40 anos de batente, Olívio jamais marcara encontro com a tristeza, sempre a proporcionar momentos felizes aos seus fregueses.
Ao ouvir tal, as lágrimas começaram a correr pelo rosto do português. Pois não é que, nesse exato momento, adentra a Confeitaria, com passos cadenciados dum verdadeiro Jorginho do ABC, a figura humanitária do médico Helen Costa ! Que, ao aproximar-se, ordena a Olívio para abrir a boca e lhe encaçapa, ato contínuo, dois providenciais tranqüilizantes.
O MILAGRE
Para que contar mais ? Dizer das presenças, não o faço que não sou cronista social. Mas posso acrescentar que até representante do Governo tinha, na pessoa de Augusto Carlos Viveiros, presidente da Emproturn.
Peço, mais uma vez, permissão ao menestrel Serejo para encerrar esta estória justamente com o fecho de sua crônica Milagre na Delícia.
“Será uma homenagem simples, com certeza. Que a Delícia não comporta orgulho, vaidade ou coisa assim. Será um encontro de amigos. Como se todas as mesas estivessem ali.
Como se tudo, tudo quanto antes existiu, existisse agora. Por puro milagre”.
É verdade e dou fé, ao som dum fado cantado com maestria por João Alfredo, o João Bolão da Redinha e das serestas.
José Alexandre Odilon Garcia