Descoberta no Rio Grande do Norte, Dona Militana, protagonista de uma
parceria com Antonio Nóbrega, é o elo perdido com uma Europa de lendas,
princesas e cruzadas
Tárik de Souza
Crítico do JB
O artista pernambucano apresenta o espetáculo ‘Lunário perpétuo’, de sexta
a domingo, no Teatro Odylo Costa Filho, na UERJ
É uma forma diferente de cantar que descamba em falas onde se misturam
formas arcaicas e populares numa voz gretada, forte, levemente soprada por
melodias ancestrais. A descoberta da cantadora Dona Militana, potiguar de
São Gonçalo do Amarante, nascida em 1925, equivale ao encontro de um elo
perdido com uma Europa das cruzadas, de romances, princesas, da Nau
Catarineta e incontáveis histórias e causos que enovelam fatos e lendas,
algumas com mais de 500 anos. Localizada como fonte de consulta pelo
pesquisador de cultura popular Deifilo Gurgel, a tradição oral vocalizada
por ela acabou rendendo-lhe a função de protagonista. O bardo Antonio
Nóbrega contracena com Militana no Romance de Clara Arlinda na abertura do
luxuoso CD triplo Cantares, de 54 faixas produzido por outro estudioso, o
poeta e produtor cultural Dácio Galvão. O projeto é da fundação cultural
Hélio Galvão (criada pelo pai do produtor) em parceria com o Scriptorium
Candinha Bezerra, patrocinada pela Fiern e o Sesi. Uma boa parte da
tiragem inicial de duas mil cópias foi vendida no lançamento, em São
Paulo, com a presença de Militana no show de Antonio Nóbrega, no mês
passado. ''Nós não estamos interessados no disco de mercado, mas em mapear
a música étnica do Rio Grande do Norte que é muito rica'', define Galvão.
O projeto começou há três anos e meio. Já são 12 títulos lançados com o
13º a caminho: um registro da banda de retreta da cidade de Cruzeta, no
interior do semi-árido. O material já editado captura um ótimo forrozeiro
que já atuou com Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, o veterano pouco
conhecido do circuito universitário Elino Julião. Nascido em Timbaúba dos
Batistas em 1936, ele brilha em dois volumes de seu Canto do Seridó, com
participações de Dominguinhos (O burro), Lenine (Rabo do jumento), Elba
Ramalho (Presente de Papai Noel) e Zeca Baleiro (Rela bucho), entre
outros. Mas há ainda o estupendo CD duplo Repente potiguarino reunindo em
renhidas pelejas métricas repentistas como Zé Monte e Sebastião Dias
(Quadrão a beira mar), Zé Ribamar e Raimundo Lira (Oitavão rebatido),
Gilson Pessoa e Chico Dias (Treze palavras por doze), Francisco Oliveira e
Neuton Galdino (Nove palavras por seis). Em Emboladas - cocos também rolam
confrontos saborosos entre Barra Mansa & Caetano (Coco no ABC, Mulher
magra, mulher gorda) e Onésimo Maia & Golinha (Eu vi clarear). O CD
Carretilhas de cocos rememora o lendário coquista Chico Antonio incluído
pelo ensaísta Mário de Andrade em sua Viagem etnográfica, em 1928.
Há ainda o precioso Cabocolinhos/ Malhação do Judas que documenta as
evocações ''ameríndias, africanas, incaicas e russas'' da dança dramática
também enfocada por Andrade, além da Malhação oriunda da península
ibérica, estudada pelo potiguar Câmara Cascudo. E uma Revisitação dos
Santos Reis por Antonio José Madureira e a Orquestra Sinfônica do RGN, que
no CD Potiguar singra desde o pré-bossa nativo Hianto de Almeida (Meia
luz, a primeira gravação de João Gilberto em 1952) ao maestro local
K-Ximbinho (Ternura) tocado pela clarineta de seu discípulo Paulo Moura.
Outro CD, Nação potiguar resume tudo: do inventor instrumental Antúlio
Madureira (Dança dos Tapuias) a A morte do touro da mão de pau, de Ariano
Suassuna e Antonio Nóbrega, baseado no tema do rabequeiro alforriado
Fabião das Queimadas (1848-1928). "
"Universo de ritmos de Dona Militana
Divulgação
Militana: mistura de cocos, romarias, desafios, fandangos
Como Fabião, (que não chegou a ser registrado em disco e de quem há apenas
uma imagem) Dona Militana integra a linhagem de guardiões orais do
romanceiro medievo nordestino, algo que o erudito baiano Elomar depura em
suas armoriais (e até operísticas) incursões por puluxias, galopes,
quadras, parcelas e antífonas.
O universo de Dona Militana (Salustrina do Nascimento) percorre romances,
toada de boi, xácaras, cocos, romarias, desafios, fandangos e jornadas de
chegança por onde desfilam histórias de nobres e escravos, condes,
princesas, duques, cangaceiros. Temas como Romance de a bela infanta, O
mouro e a estrangeira, Inácio da Catingueira, Boi madingueiro, Romance de
reis Afonso (Paulina), Mulher marvada, Coco da lagartixa, Manuel
Passarinho, General dos Maroto. Em alguns, sua voz calejada foi mantida à
capela. Em outros, foram acrescentados instrumentos, das rabecas de Mestre
Salustiano e Eusébio Macaíba à sanfona de Waldonys, sem contar a viola de
cocho de Roberto Corrêa, o cravo de Dolores Portela, o clarinete de Luca
Raele (Nouvelle Cuisine) e o violino do maestro Osvaldo D'Amore, da
Sinfônica do Rio Grande do Norte. Como a violeira pantaneira Helena
Meirelles com seus chamamés mais os cantos de trabalho e folguedos negros
de Clementina de Jesus, a dama do povo Dona Militana conecta o Brasil das
elites desmemoriadas com a parte mais nobre de sua ascendência.
Cantares. CD triplo com Dona Militana. Projeto Nação Potiguar. Tel.: (84)
211-8241.