Antoniel Campos
Noite no Café São Luís
Eduardo Alexandre de Amorim Garcia
Foi o Grande Ponto o ponto de encontro da minha cidade Natal. Era um ponto xaria, habitado por todos os canguleiros da velha Ribeira, que começava a perder encantos e comércio, prostíbulos, bares e almas que subiam a ladeira para a conversa diária e amena de fim de tarde com mortais que surgiam do Tirol, Petrópolis, Alecrim, Quintas, de onde mais?
Foi nesse Grande Ponto onde, ainda criança, tive o primeiro contato com um poeta. Era Tubiba poeta? Um negro alto e taciturno, jamais o vi sorrindo: era um pedinte que escrevia versos a carvão nas calçadas...
Quanto medo me causavam Maria Mula Manca e as estórias do papa-figo, na língua de muitos, a viúva Machado. Como me impressionei com o bate bola doutoral de João Cláudio de Vasconcelos Machado, com seu culhão aloprado, audição diária e obrigatória de todos em seu corruchiado. Ouvi estórias de trambiques de Zé Areia em americanos e era aonde eu costumava ver as rodas que se faziam imensas em torno do gigantesco Luís Tavares.
Como Natal era pequena e comunicativa, acolhedora! Como as pessoas buscavam umas as outras! Daí, os cantões multiplicavam-se nas calçadas que se tornaram estreitas, e as rodinhas invadiram as ruas, pequenas para tanta gente em bate-papos.
Ainda sem televisão, as notícias do mundo chegavam pelo rádio de fio e através dos jornalistas que chegavam das redações falando dos acontecimentos notificados pelo teletipo. Natal era feliz e disso sabia.
O Grande Ponto era o ponto da conversa sobre o futebol de ABC e América, e também para a conversa de todos os esportes amadores, do remo ao futebol de salão, Zé Alexandre, Luís G.M. Bezerra, Aluísio Menezes, Rossini Azevedo, Procópio Neto, Mário Dourado, Everaldo Lopes, Cezimar Borges, Véscio, exemplos de grandes desportistas, freqüentadores assíduos do nobre pedaço de chão natalense.
Era o ponto das conversas políticas acirradas entre aluizistas e dinartistas, e terra dos grandes encontros. Ali, tudo se decidia. Até sobre a vida e a morte, a aliança, a traição.
Nesse grande ponto vi Cascudo passear de manhãzinha, despreocupadamente; ouvi sábios e empolgantes discursos de Newton Navarro; tomei conhecimento da beleza das crônicas de Berilo e Sanderson; vi, pela primeira vez, a encenação do boi-de-reis, o prefeito Djalma Maranhão comandando, ele mesmo, os festejos natalinos e fazendo com que os meninos aprendessem a ler, mesmo que de pé no chão.
Quase que uma de frente para o outro, a Casa Vesúvio esbanjava variedades diante dos que buscavam os drinques do encantado Cisne. Era, ali, o refúgio boêmio das calçadas.
Esse grande ponto, de onde se avistava os morros do Tirol, já não mais existe. Os jovens não sabem o que significou e, se é feita a referência, eles indagam: o que é? Onde é? Os culpados pelo esquecimento somos nós mesmos, que nos tornamos velhos e desprezamos nossas memórias mais íntimas e soberanas.
Djalma, quase esquecemos também. Mas o resgate foi feito e o chão do Grande Ponto hoje tem seu nome: Grande Ponto Djalma Maranhão.
João Machado, glorificado em merecidas honras, tem o seu nome no Estádio de Lagoa Nova, aquele que seria “construído para Parnamirim”, dado à “grande distância” que, à época do lançamento da pedra fundamental, estava do centro de Natal.
Newton Navarro, ainda sem uma homenagem que honre sua história de homem de palavra brilhante, mãos mágicas em traços de encantamento e compromisso com sua gente, pena de poeta grande e prosador de geniais formações, boêmio de sensibilidade e assiduidade inigualáveis, foi lembrado para ser nome da ponte que une a praia do Forte à Redinha, a prainha que ele tanto amava e cantava em seus versos. Que lhe seja feita a justiça!
Zé Alexandre é nome de Largo Boêmio, na rua Chile.
Zé Areia, aquele que vendia frango de urubu por papagaio a gringo de Segunda Guerra, foi folclorizado e jamais deixará de ser citado entre os grandes personagens da Universidade das Calçadas que foi o Grande Ponto.
Assim falando, parece que estamos a dizer que o Grande Ponto morreu.
Não é verdade. Verdade é que a cidade cresceu, expandiu-se. Os tempos mudaram; mudaram os costumes e tiques do natalense, nascido ou chegado. E o Grande Ponto resiste, agora, sem sua Universidade, aquela Grande Universidade dos anos 50, 60, 70 em grandes aglomerações, mas como Grupo Modelo que se mantém fiel, quer nas calçadas do Café São Luiz, quer nas biroscas do Beco da Lama ou Princesa Isabel.
Sim, porque Nazi não morreu. Como o Fantasma, aquele personagem dos quadrinhos, amigo dos pigmeus africanos, que se tornou eterno por sempre ter um filho de prontidão, Nazi deixou sucessor, Adoniran, e sua meladinha continua de pé, derrubando bêbados no centro da cidade, e ainda recebendo visitas ilustres diariamente, das 11 às 14, das 17 às 20 horas.
Bares e restaurantes tomaram o Beco da Lama, a Princesa Isabel e todas as adjacências do Grande Ponto, e, dessas adjacências, fazem sua nova história, que é a história continuada do Grande Ponto como praça de alimentação, lamentação e farra, festa.
Seu Milton em noite do Amigos do Café Luís
Dentre os mais boêmios, o Caixa de Fósforos, na Princesa Isabel; o Bar de Aluísio, em frente ao Hotel Sol, na Heitor Carrilho; Odete, Fátima, Panela Velha, Major, no Beco da Lama; Neide, na Gonçalves Lêdo; Pedro Catombo, na Vigário Bartolomeu; Zé Reeira, ou Cinderela, como queiram, A Cantina do João, na Heitor Carrilho; Nazaré, na Coronel Cascudo, ponto obrigatório das tardes de sábados e todos os dias nos horários nobres.
O Grande Ponto político também não morreu: ainda é palco das esquerdas potiguares. É lá que PT, PSTU, PCdoB e CUT e sindicatos fazem suas mais expressivas manifestações. É, ainda lá, que todos os partidos concentram militantes em final de campanhas eleitorais.
É também o Grande Ponto, digo, adjacências do Grande Ponto, onde sobrevive a alma da boemia natalense, com seus poetas, artistas plásticos, músicos, jornalistas, militantes de todas as causas e bandeiras.
E, para não faltar à tradição da cidade, no Grande Ponto ainda existem turcos exploradores e vorazes, destruindo nossa economia e construindo seus impérios.
Cito Pedro Abech, o bodegueiro que ressurgiu das cinzas, invadindo a calçada sul do Beco da Lama com suas mesas e cadeiras. É nesse novo templo da cidade, a céu aberto e abrigo da marquise dos fundos da Insinuante, tendo como vizinhos o sapateiro Vavá, cartomante e padre, que Pedrinho realiza, sem tirar uma prata do bolso, belas e concorridas festas, cujo tema de comemoração é único: o Beco da Lama, pai de todo o Grande Ponto, já que pai de todos os becos.
No bar do turco, você encontra, em convívio harmônico, as militâncias de PT, PSTU e PCdoBeco - por ser do Beco e do Grande Ponto -, os primeiros com sedes nas adjacências. Nunca se ouviu estórias de tapas entre eles. De beijos, sim. Os socos e pontapés ficam para suas festas mais íntimas, mas, como me ensinou papai, aceitando conselho de Álvaro Moreyra: “as amargas, não!”
A este santuário maravilhoso de resistência, convergem os manuseadores de sebos, os artistas da cidade, os amantes da noite. Ali, todas as noites, duelos verbais são travados em mesa única, porque, em Pedrinho, apesar de tantas mesas, todos conhecem todos e a fraternidade existe, insofismável.
Tanto, que o Beco e suas adjacências, incluindo o Grande Ponto, são guardados pela Samba – Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências; e abriga a Abela – Academia Fernando Kalon do Beco da Lama, com seus 111 pobres mortais.
Na retaguarda da noite, em Escadinha, birosca de lanches encravada em pleno calçadão da João Pessoa, em pleno Grande Ponto Djalma Maranhão, a partir das 23 horas começam a chegar com suas próprias cadeiras os Pastoradores da Estrela Manhã, um grupo generalado por Joanilo de Paula Rêgo, Guaraci Picado e Cabral, que fica no bate-bola ameno (?) e a seco até altas horas da madrugada, como se a dizer que a Universidade Aberta do Grande Ponto ainda é viva, e, como tal, está a cumprir seu papel de sentinela atenta, mantendo indormido o Grande Ponto, que não pode dormir – apesar do esquecimento.
Quem viveu e vive o Grande Ponto, sabe o que significou e significa para a cidade o seu eterno coração. Quanto resgate ainda a ser feito! Quantas almas maravilhosas essa cidade gestou em passagens pelo Grande Ponto, esse Grande Ponto coração safenado, é verdade, cateterizado, enfartado, cansado e lacrimejante, mas ainda vivo, atuante e amado!