Sanatório da Imprensa
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Tal e qual os turistas nórdicos estatelados diante da taipa dos casebres, o natalense cordato, gentil e cordial, criado no arcondicionado do xópin, poderia fazer um tour pela agência do banco do nordeste. Pra conhecer suas tias.
(Aqui, um parênteses: depois da rivalidade entre xarias – moradores da Cidade Alta – e canguleiros – comedores de cangulo, peixe pobre, da Ribeira, cumpre-se inventar nova metáfora piscatória para os moradores dos demais bairros. Salmonídeos, comedores de salmão, poderia ser adequado. Mas tubaronense é o termo que mais se adapta a esse cardume ávido de alturas.)
Conto isso prO Fotógrafo. Aliás, não conto, mas preciso de uma deixa pra retomar o fio da meada do nosso passeio flâneur pelas ruas do centro de Natal. Em vez, estaciono o carro, diante de um prédio tombado pelo Patrimônio Histórico. Passa um jornalista, velho conhecido dO Fotógrafo. É difícil não encontrar um conhecido em Natal – ao menos nesse quesito, estamos todos tombados pelo Patrimônio Histórico. O sebo de Jácio, de portas abertas, livros escancarados, LPs empoleirados, brilha sob o sol que lhe faz sombra à essa hora da manhã. A barba de Jácio sorri, os óculos fundo-de-garrafa sorriem, a barriga de Jácio sorri proeminente debaixo da indefectível camiseta branca serigrafada. Tão rindo de quê, barba, óculos e camiseta? O sebo Cata-livros não está tombado pelo Patrimônio Histórico do Município e ameaça ser despejado pela filial do Banco do Vaticano, lá longe, nas lonjuras da Capela Sistina, bem perto, na Arquidiocese local.
Na Praça Padre João Maria, nenhuma vela acesa. As janelas do prédio da Irmandade do Senhor Jesus dos Passos: fechadas. Alguém abriu um buraco na esquina, fizeram uma farmácia. Vendem remédios. Pergunto pro vendedor qual o campeão de vendas.
Analgésicos, fantasio a resposta.
Beco da Lama. Último reduto do udigrúdi coletivo, última trincheira aberta. Nazi já aberto, mesas na calçadinha. Mais na frente, o sebo Lady Luck abriu há pouco. Coleção completa dos Beatles a duzentos e vinte reais. Em long-plays, faz favor. Álbum Yesterday and Today, aquele, com os Fab Four travestidos de Butcher’babys’Boys, a mil e quinhentos. Reais. Moraes, o dono, entre o reclamo e o lamento, anuncia o apocalipse: a moçada quer trash. Speed metal, death metal e outros quetais. Música metalúrgica no país dos torneiros-mecânico. Ou seria torneiro-mecânicos? Ou torneiro-mecânico é categoria que recusa o plural? Nas colunas sociais: festinha, som mecânico (sic).
Ninguém ouve mais o Black Sabbath... o Zeppelin... balançam de um lado pra outro, tristes e solidários, os pelos P&B da barba do dono da Dama Sorte. Na parede, coalhada de compactos, a conterrânea Terezinha de Jesus, com z e s, na flor da idade e nos cabelos parece sussurrar com os olhos: pra incendiar seu coração.
Pra incendiar seu coração, o cantor Wigder no vizinho sebo de Antonio Carlos. Barbudo, Wigder. Todas as vezes que tirei a barba, me arrependi, confessa. Wigder é, como se diz, das antigas, o que, no seu caso, é mérito. Canta com o coração. Incendiado. Camilo Lemos, alguns quarteirões e horas depois, bota lenha na fogueira: Manoca diz que todos podem até ser canários, mas o único belga é Wigder. E sorri, orgulhoso do amigo (no centro antigo de Natal as pessoas ainda se orgulham dos amigos que têm).
Antonio Carlos me traz de volta do futuro encontro com Lemos, guitarrista como Manoca, dando a dica: conhece a Banda Imaginária? Ave de Pau é o LP que Wigder carrega na mão, safra década de 70, creio, com o próprio nos vocais, e Carlinhos Moreno nas cordas.
Conheço. Conheces. Com Carlinhos Moreno no Le Cascine, em Florença, século passado. Conhece. Conhecemos. Natal no exílio voluntário. Carlinhos me apresenta Lola, de quem eu só conhecia o desenho a bico de pena de Flávio Américo na capa do A Revolta dos Peixes (por sinal, presente nos sebos a módicos reais). Conheceis. Conhecem.
Wigder me traz de volta do passado toscano. Diz, como quem não quer nada, que pretende convidar Moreno pra morar com ele. É por isso que eu nunca tirei da gaveta o título concedido pela UFRN uma década atrás. Qual jornal estamparia em manchete de primeira página notícia tão prosaica – “Amigo dá uma força pro outro, dividindo o mesmo teto” – ?
Numa esquina do Beco, diagonal com casa de umbanda, mesa de plástico do Nazi, o artista plástico Falves Silva e senhora, sim, pois, ela mesma, Terezinha de Jesus. Estão começando o incêndio. O Beco e arredores se preparam para mais um carnaval fora de época, o Carnabeco, bem longe, lejos, lontano, faraway, do Carnatal, o carnaval fora de época e lugar de Natal. No Beco não tem abadá.
Falves está elegante, óculos escuros de cor indefinível pousado num rosto gullariano. Mas é preciso retomar ítaca: pra chegar no Sebo Vermelho, recomenda-se ao flâneur atravessar a Rio Branco, na altura do Ducal. O Ducal foi um dos grandes hotéis da cidade, junto com o Reis Magos e o Grande Hotel. Duca. O primeiro no centro, o segundo na praia, o terceiro na Ribeira. Três épocas diferentes para uma cidade já não tão distinta. A noiva do sol da época de Cascudo agora bate as areias de Ponta Negra à cata de dólares e euros. Nada de novo no mais antigo front do mundo – a cama. Na II Grande Guerra os americanos trocavam dólares por sexo. Boquete e chewing gum.
Esses três hotéis, assim como os bairros onde ainda se localizam seus edifícios, estão abandonados, fechados ou usados e abusados como repartição pública. Repartição é palavra antiga pra secretaria, municipal, estadual ou federal. Repartição é palavra de ordem pra Natal mais-que-moderna: vamos repartir igualmente – um pr’ocê, dez pr’eu. A desigualdade social em Natal beira a casa do caos. Outra regrinha matemática, proclamada pelo jornalista Cassiano Arruda: em Natal o sujeito gasta 200 pro outro não ganhar 20.
Feita as contas, a prova dos nove, no Sebo Vermelho. Nove entre dez figurinhas fáceis, na Londres Nordestina, trocam figurinhas, jogam sinuca e conversa afiada, tomam cerveja, bebem cachaça e comem caranguejo nas manhãs com cheiro e suor de tarde de sábado, no Sebo Encarnado.
O Fotógrafo e eu cruzamos a Rio Branco na encruzilhada com a São João Pessoa, dispostos a tudo ou nada. O cronista canino Carlão de Souza refestelado na cadeira bem na porta. É ele mesmo quem diz que, de magro, engordou. Um bull dog. Na soleira da porta. Mais pra Baleia que pra Argos. Na soleira da porta.
Quanta gente que eu não via. Quanta gente não conhecia. Paulinho Procópio, de volta do exílio de Mossoró City, sorri. O pintor de giz sorri. Eugênio ½ quilo idem. O Fotógrafo, nos primórdios saca muelas, é todo dentes. Tão rindo de quê? Da vida besta passando lá fora, além da soleira encarnada dO Sebo, das meninas assustadas assustando o coração e os genitais da gente, de quem espera o ônibus que os levará pra bem longe da capital, pr’esses nomes ainda por morrer: Parnamirim, Macaíba, São Gonçalo.
Afonso Martins não podia faltar. Vem matreiro, sorrateiro, gato gordo. Passa direto pra cigarreira. No Rio de Janeiro as bancas de jornal não vendem cigarros. Em Natal as bancas de jornal não vendem jornais. E o Signore Martini parou de fumar. Faz meia volta com um pacote de chewing gum nas mãos. Adentra sebo adentro sem ignorar o cachorro Ex-Magrus na soleira. A. Martini é uma festa silenciosa. Não ignora, nunca é ignorado. É dele o primeiro caranguejo do mezzogiorno. Voltou da Holanda há pouco, numa conexão que passa pela sua temporada pernambucana, quando fez amizade com um descendente de Nassau. Em Amsterdã assistiu a cambada de brasileiros exilados vaiarem o Mano Caetano singin’ e speakin’english. Fuga e Prelúdio do Real.
E, antes do Carnabeco, ascensão estratégica nO Tabernáculo. O Tabernáculo encontra-se quase vazio, com carteiras escolares dispostas em círculo, e um nu feminino numa posição que faria corar feministas e puristas.
Desfeitos os anéis de fumaça, a trupe de nibelungos sai em busca do que restou: um dedo de prosa, dois de cachaça. Como sóis dizer, vão-se os anéis.
As más línguas insinuam que a banda foi tocar em outras paragens quando o Príncipe Encarnado baixou em Nazaré. Na transversal do tempo, quem tem fama deita-se na lama. Augusto Lula, cineasta sem-filme, assenta sua bandeira vermelha, copo de plástico na mão e fúria contida no olhar. O casal de Jesus continua emborcando todos os santos. Marcelinho Bob’s, em fase Ronald McDonald-Tropical-Odara, dispara pro seu refúgio preferido: o piano sem bar do Palacete da Cultura. Lá, se não é necessariamente amigo do Rei (ou da Rainha), é simpático às recepcionistas, condescendentes com sua descompostura de velho fauno galante. O único senão, porém, todavia, contudo, é o olhar vigilante do dito cujo, funcionário público na cara e na farda. Sua paciência com M. Bob já chegou – e vê-se – até as raias do bigodinho preto.
Carlinhos Bem
O Fotógrafo dispara uma suposta autorização de Selma. A funcionária, sempre simpática e sorridente, informa aO Desavisado que agora é a vez da Candinha. Mexericos à parte, pegamos literalmente o beco, agora ainda mais inflamado e incendiado com a chegada de Nero, aliás, Incitatus, aliás M. Mossoró, senador dos miguéis potiguares, ávidos por um Macaco Tião, um Rinoceronte Quindim, ou que bicho seja, na fauna política local. Em franco processo de extinção. Às custas do famoso erário público.
Nesta terra em se plantando tudo dá. Dá até pra ver o encontro inesperado (sic) de Mossoró com um certo Secretário de Estado do Elefante Sem Memória, uma das tantíssimas eminências pardas do governo social-democrata e responsável pela irresponsabilidade que é prometer uma ponte sobre o rio Kwai, quer dizer, Potengi – em dois anos o que não se fez em dez. Assovia daqui, assovia dali, finge que não vê e não é visto, e logo-logo, pose pra posteridade, arrodeado de políticos que logo mais estarão presentes nos camarotes da Sapucaí, quer dizer, do Carnatal.
Mas, ainda estamos no Carnabeco. Onde todos gostam de e da Samba (Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Arredores) e são doentes do pé: o que mais se vê por aqui são os indicadores em riste se movendo alternadamente pra cima, acompanhando as tristes notas de um frevo (no Beco da Lama qualquer frevo tem ares de blues).
Chega.
Chega de tanta cachaça, suor, cerveja.
A Rio Branco pega fogo com a primeira abertura das lojas pro Natal que se aproxima. Nem um sinal de nenhum Papai Noel. Embora as renas abundem.
De volta pra casa. Deixo O Fotógrafo no aconchego do seu lar, passo em revista as revistas da banca de revistas da já citada Afonso Pena, dou de cara com Blues, de R. Crumb, Conrad Editora, um grande nome, o melhor, para uma das melhores editoras de quadrinhos e quetais deste impávido e varonil colosso. Tá tudo lá. Pra incendiar seu coração e afastar as trevas. O velho gordo negro tocando gaita, as capas de disco desenhadas pelo criador de Fritz The Cat (incluindo Cheap Thrills, da Big Brother Janis Joplin & The Holding Company, com o hit de qualquer verão que se preze, Summertime, time, time, the living’s easy, os peixes estão saltando e o algodão já tá alto) e as histórias fantásticas e viscerais de bluesmen, como Charley Patton, Jelly Roll Morton, Frank Melrose. A música do diabo. Robert Crumb resume a tríade (primeiro quadrinho da página 15): “mulheres devassas”, “boa vida”, “destilados de fundo de quintal”. A música do diabo. Primeiro quadrinho da página 16: “mulheres invejosas, mulheres infiéis, bebedeiras e farra”. A música do diabo. “Po-o-bre garoto – bem lo-onge d-de casa... Po-o-bre garoto – bem longe d-de casa...”. A música do diabo. No verão de 2004, virada pra 2005 – como era mesmo a definição para Blues que O Fotógrafo me falou na soleira ensolarada do Sebo Encarnado? Não lembro. A música do diabo. Charley Patton, na página 13, “I gotta move in the alley”, traduzido por Daniel Galera como “Preciso me mudar pro beco”. Mais sugestivo impossível.