o apóstolo da medicina do Rio Grande do Norte
Salésia Dantas
Tribuna do Norte
25/03/01
Se estivesse vivo, teria completado ontem 100 anos de nascimento o médico José Ivo Moreira Cavalcanti. Foi como professor que iniciou sua carreira e dela nunca afastou-se, lecionando em várias escolas de Natal, conciliando as atividades de médico formado pela Faculdade do Recife aos 33 anos, já casado com Josefina Moura Cavalcanti.
De família humilde, enfrentando dificuldades para concluir os estudos, trabalhava durante o dia e à noite aprendia as lições aproveitando a luz dos poucos lampiões que iluminavam as praças públicas da cidade provinciana.
Ainda criança, perdeu o pai, passando a ser educado por outra família, os Moreira, de quem adotou o sobrenome. Fez do exercício da profissão um sacerdócio até próximo a falecer no dia 3 de abril de 1955, vítima do segundo enfarte aos 54 anos de idade. Era o médico amigo dos pobres e ricos, razão pela qual, ao se espalhar a notícia do seu falecimento, numa madrugada de forte chuva e trovões como a muito não acontecia em Natal, uma romaria de ilustres e humildes se aglomerava diante da capela da Policlínica do Alecrim, local do velório, dali saindo para o cemitério do bairro.
Eram as últimas homenagens prestadas ao médico das famílias, que não media esforços para atender a um chamado de urgência a qualquer hora. Não dirigia. Por isso, se deslocava de táxi até à casa dos clientes. O único carro que possuiu foi um Ford Perfect, que lhe serviu até os últimos dias de vida, tendo como motorista um soldado da Polícia Militar, direito designado pelo comando da agremiação por sua patente de médico capitão. O veículo foi presente do amigo comerciante Amaro Mesquita, que ao fazer-lhe a doação teria dito: "É para você, Zé Ivo, poder fazer mais caridade e não se cansar tanto".
Boemia
Sua trajetória de vida foi cumprida por marcantes fases. O jovem boêmio, autêntico xaria nascido na Cidade Alta - rua Vaz Gondim próximo ao Beco da Lama, e que atualmente recebe o seu nome, é citado por Cascudo como grande prestigiador da poesia e canções da época, ao interpretar com sua privilegiada voz o amigo compositor Othoniel Menezes em serenatas pelas desertas e pacatas ruas de Natal.
Em seu livro O Cancioneiro de Othoniel Menezes, Cláudio Pinto Galvão descreve relato de Luís da Câmara Cascudo de que, era a canção Viver de Amor, letra de Othoniel, a preferida dos seresteiros natalenses. Dentre estes, José Ivo, que tinha uma peculiaridade: ao chegar no verso:
"Cravo a florir na fantasia
de minha lira rude e apaixonada!
Que tormento, se fores um dia
Uma saudade roxa e envenenada",
gritava: "De joelhos!". E o grupo todo obedecia. Justificava ser este o mais belo verso, e por isto, devia ser cantado de joelhos.
O religioso
A boemia foi abandonada por conta de uma forte crise de apendicite, sendo operado de urgência. Escapando desta, daí em diante dedicou-se com fervor à religião católica. Filiou-se à Congregação Mariana, à Ordem do Imaculado Coração de Jesus, Irmandade dos Passos e conferencista de encontros eucarísticos e nos retiros durante o período de Carnaval.
Acompanhava com freqüência as procissões religiosas, levando ao seu lado a mulher Josefina e o filho único Lúcio José. Fez parte ainda, da comissão de reconstrução do Convento Santo Antônio em plena segunda guerra mundial, conforme é citado em livro escrito pelo Monsenhor Eymard L'Erestre Monteiro sobre a Igreja do Galo.
Ao lado do Monsenhor Alair Vilar, peregrinou pelo reconhecimento dos mártires de Cunhaú e Uruassu, sendo muitos os seminaristas que receberam ajuda financeira de sua parte para prosseguimento da vocação religiosa. A convite do professor Ulisses de Góis, fundador do jornal A Ordem, colaborou com a escrita de vários artigos para este periódico católico.
Desportista
Na juventude, José Ivo foi desportista, remando pelo Centro Náutico Potengi, e torcedor dos mais ferrenhos pelo time do coração: o América FC.
O militar
Foi também um dos fundadores do Hospital da Polícia Militar de Natal, indicado seu primeiro diretor em 1945. Com o licenciamento de Dix-huit Rosado Maia, ele passou a ocupar o cargo de capitão médico da agremiação. Costumava retribuir a continência militar dos subalternos com a pergunta: "Como vai, meu filho?". Da mesma forma que atendia com simplicidade, nas suas cotidianas visitas médicas ao quartel, ao militar que lhe procurava para consultas. Esperava pacientemente que este, diante dele, perfilado e em impostada voz, citasse a patente, nome, número e o pelotão ao qual pertencia, para dizer-lhe calmamente: "Venha cá, meu filho, dizer o que sentes!"
Política
Sendo José Ivo Moreira Cavalcanti um homem de reconhecida estima e respeito entre pobres e ricos com os quais vivia diariamente em contato com o cumprimento de sua missão clínica, não pôde fugir ao desejo dos amigos em vê-lo ingressar na política candidato a deputado estadual. Não logrando vitória, usou do constante humor como justificativa: "Amigos, eu tenho muitos, mas, eles já estariam presos a outros candidatos melhores do que eu".
Monarquista, mantinha correspondência com os Orleans e Bragança, contribuindo financeiramente para a volta do regime ao país, sendo representante no Estado do movimento Ação Imperial Patrianovista, que também tinha como filiados Câmara Cascudo, desembargador Antônio Soares, monsenhor João da Mata, padre Monte, juiz Véscio Barreto, professor Edgard Barbosa, dentre vários incluídos nas fichas amareladas guardadas com carinho, entre outros documentos, pelo filho geólogo Lúcio José Cavalcanti.
As lágrimas não podem ser contidas por Lúcio, ao falar sobre os pais. Relembra a infância no casarão antigo da Avenida Rio Branco, dividido entre residência e consultório. Final da tarde, era ponto de encontro para as conversas entre médicos, políticos, comerciantes, intelectuais. Um deles, o Mestre Cascudo. E humildes, também. Figuras populares que vinham cumprimentar o dotô Zé Ivo, compadre de tanta gente nesta cidade.
Morreu pobre, mesmo com tantas funções desempenhadas. Provas da dedicação e o espírito humanitário nos cargos exercidos. Nada sendo incorporado aos seus ganhos salariais e ao falecer ficando apenas para a viúva o montepio de professor estadual.
Da solidariedade dos amigos, a família recebeu um imóvel localizado à rua Mossoró. Doutor José Ivo é nome de cadeira na Academia de Medicina do Rio Grande do Norte, ocupada pelo médico Estênio Gomes da Silveira.