Tribuna do Norte
06/01/2002
Estava o pobre cronista a enfrentar o calor da tarde, tomando sorvete, no que antigamente se chamava restaurante, lanchonete, ou qualquer outra coisa, mas que, no caso, tinha o nome regionalíssimo de bistrô. Compulsava jornais do dia, meditava nas querelas e ensinamentos do ano que se findava nas lonjuras do espanto. Foi quando, de repente, pressenti e ouvi que três senhoras bonitas, modernas e natalenses, falavam, exaltadas, bem perto de mim. Exatamente atrás de mim. Como estava de soslaio, elas não previam minha curiosidade inata diante do diálogo que os seres humanos, geralmente ricos e pouco enriquecedores, mas sábios e joviais, possam revelar da personalidade frágil e forte - ao mesmo tempo - da condição humana.
Liguei meu gravador, que guardo na minha lembrança mais especial, e fixei momentos inesquecíveis da conversa dessas três citadas senhoras - ou senhoritas, quem sabe? Será que ainda existe essa classe? Uma delas, exaltadíssima, conclamava a solidariedade das duas, e dizia: "Vocês viram? Não fui incluída por Vânia Marinho, na página que ela escreve na TRIBUNA DO NORTE, como mulher fashion do ano. Era só o que faltava".
A segunda amiga deduziu outras explicações: "Isso é pura marcação. Tenho certeza de minha elegância, sou bem-nascida, tenho berço. Com certeza. A revista CARAS inclusive quis fazer uma matéria comigo e vem Vânia Marinho, achando-se dona da verdade, e me exclui da lista também propositadamente. Duvido que se Salésia ainda escrevesse sua coluna, me esquecesse. Com certeza (expressão da moda) que não ..." Senti a vibração furiosa e feminina das vaidades feridas - ou de feras abatidas pela decepção.
Aí, foi a vez da terceira comensal. O meu sorvete já havia se evaporado. De cabeça baixa, eu era só atenção, e profunda, por aquele diálogo, ou triálogo, memorável. Foi quando a terceira voz, branda mas contundente, revelou a sua história ecumênica. E desabafou: "Duvido que se Jota Epifânio fosse vivo, com certeza, eu estaria entre as dez mais elegantes, como ele tanto me considerava. Mas é isso: o que será elegância para Vânia Marinho? Eu compro roupas na Daslu, sapatos em Roma. Minhas bolsas todas são Louis Vuitton. E também não sou mulher fashion. Por quê?" Contudo, a primeira voz feminina, usando a lógica aristotélica e o pensamento cartesiano, ensinou: "Mas essa jornalista diz que, para ser fashion, é preciso, além da elegância - e aponta para a matéria do jornal - é preciso "estar sempre presente nos agitos da cidade, freqüentar bares, baladas, vernissages, lançamentos. Ora, ora - eu não sou de tomar porre em bares. Em lugar nenhum. Tenho horror a bebidas e a quem bebe. E precisa estar antenada... Tenho um vestido Picasso puro. Uma blusa Van Gogh legítimo e óculos Renoir autêntico".
A outra presença também não se calou, reagindo: "Nós fomos realmente discriminadas. De propósito mesmo. De agora em diante, vou me dedicar somente a obras de caridade. Com certeza. Agora, pelo amor de Deus, você trocou as bolas. Picasso, Van Gogh e Renoir foram pintores. Você diga Valentino, Versace ou Cartier. Se isso chegar aos ouvidos de Vânia, ai meus orixás..."
A essa altura do confuso campeonato, que trouxe tanta decepção, empates e desempates, levantei-me e, com voz de pastor que cuida de suas ovelhas tresmalhadas, já em pé, olhei para as três e fiz meu pequeno sermão: "As senhoras me permitam o atrevimento em falar-lhes, mas bons mesmo eram os anos 50 que Woden Madruga rememorou, em nota inesquecível. Vou ler, a seguir:
"Me lembro que nos idos dos anos 50, o baile de reveion era no Aéro Clube. Quando dava meia-noite, Maribondo ia para a ponta do palco tocar o clarim. Fazia-se silêncio e o doutor Gentil Ferreira de Souza, presidente, começa o seu discurso de saudação ao Ano Novo. Encerrado, a orquestra de Jonatas d'Albuquerque atacava de frevo. Todos vestidos a rigor, os homens de smoking, summer (paletó branco, calça preta) ou diner-jacket (calça preta, jaqueta branca). Muitos driblavam a etiqueta e vestiam terno branco, mas a gravatinha borboleta preta (podia ser cor de vinho) era indispensável. Como indispensável era a faixa preta (ou vinho) de cetim cobrindo o cinto. As mulheres todas de longo (soirée). Algumas (poucas) mais afoitas (modernas) com decotes generosos". A mais exaltada das três comoveu-se e disse: "Vamos todas voltar aos anos 50. E não precisaremos ser fashion. Com certeza".