Os pregos suspensos da Babilonia natalense
Tribuna do Norte, 26 de julho de 1992
Mário Henrique Dantas de Araújo
Quando me perguntaram sobre os dez anos que virão, penso em responder pelos quinze anos que passaram. Na próxima década, não sei se ainda vai ser preciso ficar de frente para Meca. O que pode acontecer é que talvez fiquemos um pouco perdidos entre o contemporâneo e a nostalgia, reflexo de um saudosismo que vai fazer parte do show.
A poesia mudou. As palavras ganharam formas geométricas e uma simples letra pode significar uma mensagem. Os muros viraram galerias para os poetas extravasarem os seus delírios urbanos, enquanto os bruxos se reproduziam nas telas dos até então pseudo-pintores.
Ao passear pelas ruas da classe média, já se podia ouvir os acordes caseiros de uma banda de rock que surgia. Rock, pintura e poesia passaram a ser a arma dos jovens artistas que surgiram da fusão dos ideais de liberdade dos anos 60 com o psicodelismo dos anos 70. A cidade era quase palco do show com seus poucos movimentos culturais.
Os loucos incompreendidos da vanguarda periférica provaram que a maior lucidez estava na livre interpretação de suas próprias criações. Os bobos da corte fizeram a história de uma arte que não era popular, nem de elite. Ela apenas existia e persistia pela pura inquietação de descobrir o poder da imaginação.
Acho que todos foram livres, mas muitos não foram livros. Muitos foram cantados, mas não foram discos.
Por isso, a história desses célebres incompreendidos está contada por meios alternativos e geniais que supriam toda a falta de uma infra-estrutura que incentivasse a arte local.
Uma dessas idéias é a Galeria do Povo, criada pelo poeta Eduardo Alexandre, o Bobo da Corte, como era conhecido por causa da sua persistência heróica em desenvolver um trabalho sem o respaldo das entidades competentes.
Mas, o mais importante disso tudo é que a Galeria do Povo teve o maciço apoio da população da cidade, tirando do anonimato um grande número de artistas urbanos que, pela primeira vez, pode sentir, do outro lado da rua, com a expectativa de um amador, a reação das pessoas; ou melhor, do povo, a passear os olhos pelas suas próprias criações.
A Galeria do Povo é hoje um documento de certidão de nascimento de todo esse movimento astístico-intelectual contemporâneo da cidade. Pergunte quem não passou por lá? Em termos de arte local, a sua representatividade é unanime.
Para mim, é um fenômeno que resistiu intempestivamente ao descaso das autoridades competentes e transformou-se na própria história da cidade. Nos finais de semana, quando o sol pintava a água do mar com seus raios prateados, o muro rústico e, às vezes, imponente, da Praia dos Artistas, acordava para abraçar a nata do underground que vinha desde a periferia até a zona sul, para depositar, em pregos suspensos, o cio da poesia e o devaneio dos poetas na Babilônia de tijolos aparentes que, por sua própria postura vertical-horizontal, contestou a censura e a repressão do regime militar pós-64.
A Galeria do Povo atravessou fronteiras e foi a Brasília, levando na bagagem obras de muitos natalenses que, como o próprio movimento, atravessaram a década, podendo desfrutar de seu até então sonhado e almejado lugar ao sol.
Não querendo invocar um certo paternalismo, sinto-me na obrigação de exaltar a prima idéia perseverante do poeta Eduardo Alexandre, pois, reconhecer que a galeria do povo foi o trem de partida para todo esse movimento hoje consistente que emoldura a arte popular da cidade, não é o suficiente quanto se fez parte dele.
Os festivais de arte, os jornais alternativos, as produções coletivas, foram conseqüência da causa maior de um artesão sonhador que, a cada prego que batia na parede com seu martelo, registrava a memória e contava a história da arte natalense.
Hoje, muitos já não são mais anônimos; são donos do seu próprio trem. Mas, nem por isso, a Galeria parou na última estação, porque como todos nós que já viajamos por seus vagões, muitos ainda surgirão para tomar rumo a essa viagem. Pois, como a Praça Castro Alves, a Galeria também foi, é, e sempre será do povo.
Para finalizar, devo registrar duas frases que expus no muro da Galeria do Povo em 1979, que, sem querer, exprime toda essa explosão cultural dessa locomotiva dirigida por Eduardo Alexandre:
A vida é um trem que passa. E nós o vagão descarrilado.