(Para ler, ouvindo Dear Old Southland, em alguma versão de 1937)
Um dia o rio Mississipi iria se vingar. Era inevitável. Quando você desobedece as regras de um rio, ou ele morre deprimido ou fica irritado e sacoleja feito uma seperpente de água a arrastar a vida dos homens. Nova Orleans era uma das cidades que estavam na minha lista. O delta do Mississipi tem uma mística toda própria para quem gosta de boa música. Cenário natural do Blues e do Jazz, aquela região parece guardar as raízes do que a cultura norte- americana produziu de melhor. Uma música que surge da alma profunda da América negra e que contamina o mundo a muito tempo.
Por Bechet, Nova Orleans deveria ter sido poupada. Mesmo que a cidade fosse uma porcaria (eu não sei, não conheço), mesmo que não houvesse um único homem justo a viver naquela terra e Yaweh, com seus picos de ira injustificada seguidos sempre de uma misericórdia incontida, resolvesse transformar todo mundo em estátua de sal, ainda sim, por Bechet, as ruas e casas de Nova Orleans deveriam ter sido poupadas.
Mas não dava para ter argumentado isso com um furacão. Não dava para ter dito: “Ei, destrói Las Vegas! Deixa Nova Orleans inteira, cara!”. Ele não iria entender. Um furacão não sabe o que é boa música, e a natureza é muito ensimesmada para ter piedade dessas invensoezinhas humanas. A nossa espécie anda pela terra a um punhado de milênios, fez muita besteira, mas também, para compensar, andou fazendo coisas boas. Andou dando uma força para a natureza e espalhando beleza por aí (apesar de que, se formos fazer o cálculo entre a porcaria e a beleza, acho que a beleza sai perdendo). Mas quando a gente olha o clima louco desses dias, vê o resto da beleza do homem escorrer sem cerimônia para a vala comum das espécies em via de extinção perde um pouco a autoconfiança e começa a pensar sobre o que realmente importa.
Você pode botar a culpa na porcaria daquele dique, pode por a culpa na droga do carbono que esquenta a atmosfera, pode até culpar o Zé Dirceu, não importa. O fato é que esse processo natural que a turma vinha alertando a muito tempo já está andando, só não vê quem ganha dinheiro da indústria do petróleo. O pior de tudo isso é que, diante dessas forças caóticas da majestade natural não existem argumentos morais ou estéticos. Não adianta ser bom ou justo, nem gostar de Jazz.
Pablo Capistrano