O Brasil não tem o que reclamar. Sempre gostou de falsos heróis. Gosta tanto, ainda, que agora mesmo os cofres públicos estão pagando indenizações milionárias aos heróis de ontem. Pagou tudo. Nada tem mais a pagar. E se de nada o poder público pode ser cobrado, é porque a luta tinha um preço. Uma história recente, da pós-ditadura. Isso quando não confundimos heróis com ídolos. Aqui, tem herói de todo jeito. Herói que morreu pela pátria; que matou pela pátria; e que mandou matar pela pátria. Numa mixórdia tropicalista e carnavalizada.
Vi o Brasil sepultar Airton Senna com honras militares, seu esquife sobre os ombros de bombeiros num desfile pelas ruas como se, em vida, tivesse sido um herói a defender causas coletivas. Certo, era um campeão de Fórmula I. Um grande piloto. Mas não era herói. Morreu trágica e precocemente, sim. Não contesto. Mas ser piloto de carros de corrida é um ato voluntário. E a Fórmula I é um circo espetacular e milionário. Ele recebia milhões para arriscar a vida. E era generoso. Tudo verdade. É que só a bondade humana mata o remorso.
Ora, o Brasil gosta de falsos heróis. Vejam o caso de Roberto Jefferson. Ninguém duvida da faxina que vem fazendo nas relações internas do sistema político. No escambo espúrio desse mercado sujo e pulguento do toma-lá-dá-cá. Mas foi ele o defensor de Fernando Collor, quando a sociedade brasileira queria arrancá-lo do governo numa derrubada histórica. Mas, antes disso, nós o fizemos herói com o título majestoso de O Caçador de Marajás. Numa cadeira de rei, na capa de Veja. Foi mais um falso herói e só caiu porque deixou os rastros.
Na verdade, Roberto Jefferson pode muito bem argumentar que defendeu nosso herói. Um herói que depois caiu em desgraça. Nós gostamos de farsa. E somos dramáticos. Fizemos de Tancredo Neves um segundo Tiradentes. E ele foi um herói tão assim? Um herói das manhas e artimanhas mineiras. Bastou uma greve de professores em Minas e mandou às ruas tropas de choque, não lembram? Fartas e agressivas, já esqueceram? E os aviões das grandes empreiteiras a serviço dele na luta das Diretas como Veja mostrou? Já estão esquecidos?
São poucos os nossos heróis. Pouquíssimos. Agora mesmo perdemos alguns deles. Ex-guerrilheiros e ex-militantes da luta armada. Não resistiram ao fascínio do poder. Uma vez encastelados, não foram diferentes de Robespierre. Também degolaram, em forma de expulsão do partido, as cabeças dissidentes. Porque o coro dos contrários, hoje, como ontem, é insuportável aos ouvidos dos poderosos. A crítica é perigosa para quem detém o poder. Desmascara. Desnuda. Desmonta a farsa. E grita, como o menino da fábula, que o rei está nu.
São pouquíssimos os nossos heróis. E se há um símbolo de herói de verdade, é o brasileiro anônimo. O homem comum. Muitas vezes enganado nas suas esperanças. O homem sem nome. Sem emprego. Sem sistema de saúde. Sem educação. Sem segurança. Sem cidadania. Sem dono. Sem nada. Esse é o único herói que resiste a tudo e a todos. Com o destemor de lutar todos os dias para sobreviver. Ali, toma um porre de vida no futebol; acolá, o pileque de esperança no jogo do bicho; e vai indo. Passo a passo. Triste e cansado. Herói de si mesmo.
Vicente Serejo
Natal/RN
O Jornal de Hoje, 6 de julho de 2005
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