Sanderson Negreiros
Quando conheci Newton Navarro? Lembro bem. Era o ano de 1953, eu saia do Seminário aos 13 anos e, numa livraria da Coronel Cascudo, encontrei Dorian Gray Caldas. Conversei com ele e comprei o "Narciso Cego", do poeta Thiago de Melo. Dorian deve ter se espantado com minha meninice; e eu lhe fiz a pergunta que me abrasava a vontade de falar: "Você acredita em Deus?" Não lembro o que respondeu; recordo que ele me levou para conhecer Newton Navarro. Era uma casa de Moacyr de Góis, seu primo, onde foi o Bradesco. Cinco horas da tarde. Newton dormia. Foi acordado e nos recebeu generosamente. Senti que ele estava de ressaca. Eu não sabia o que era ressaca. Um espanto. E começou, aí, uma amizade, com tantos trâmites, surpresas e novidades, que posso dizer hoje: convivi com alguém que apostou com a Vida de quem chegava primeiro ao término do silêncio. Do silêncio final. Definitivo.
Visitei-o tantas vezes, em casas diversas que ele alugava, ao lado de Dona Celina, sua mãe, e Seu Elpídio, seu pai; casas humildes, que já não sei os caminhos que ele atravessou nessa vida, carregada e comungada de vitórias e derrotas, que é difícil dizer qual era o Navarro que a gente conhecia... Para mim, ele abriu caminhos; falava de pintores e romancistas, de que eu nunca ouvira falar; escritores e poetas que conhecera no Recife. E fomos ao Recife revisitar seus tempos áureos de vida pródiga; rever Mauro Mota, Tomás Seixas; e me apresentando àqueles amigos e artistas que fizeram do Recife, para ele, um retrato na parede.
E doía.
Nos momentos em que a boemia obrigava-o a parar, surgia o leitor de romance, voraz. Luís Carlos Guimarães sabia disso. E emprestava-lhe as novidades. Então, Navarro pintava ou escrevia contos. A crônica para ele era sempre urgente, que ele assinava na instantaneidade do jornal. Mas está nos contos ou quadros de lirismo inesquecível sua força maior. Mas como esquecê-lo como orador imbatível? É tanto para dele falar e recordar-lhe o perfil de um talento incomum, que lhe perguntava: "Por que você não pára para criar?" E ele respondia: "Sem sofrimento, não sai nada". E invadia o mundo - mas o mundo não se esconde. Ele invadia o quotidiano, queria ultrapassar as horas, domesticar o possível e o impossível. Parou aí.
Aos 63 anos, já amparado por essa admirável figura chamada Salete. E chegou a me dizer, certa vez: "Tudo que você escrever sobre mim, coloque, antes de tudo, o nome de Salete". Que o amparou como mãe, irmã e companheira. Inexcedíveis.
Hoje, ele navarreia. Aonde navarreias, poeta? Tu que estavas aqui, preso à condição humana, mais dolorosa e ressurgente, te libertarás, quando um pouco de nosso amor chegar perto de quem pensava que a Poesia era maior do que a Vida; esta que nos obriga a muito sobreviver, só é poesia depois da morte, quando somos reconhecidos criadores de alguma coisa. E tanto criaste, ó donatário da surpresa! Para tua surpresa inclusive. Navarreante. Como teus amigos, Luís Carlos e Berilo, que navegam, insubstituíveis, na nossa lembrança, e se foram, também, para o Outro Lado - Já os encontraste? Tu que sentaste a Beleza em teus joelhos, e não a injuriaste, como fez Rimbaud, mas foste eternamente dominado pelo frêmito do que na Beleza é eterno, e contrastantemente efêmero? Tenho certeza de que ainda viajas, navarreante, igual à força dos cometas azuis, em busca do Mistério. Que, afinal, é Deus, abrandando o sentimento trágico da vida, que era teu escudo. E teu descuido, de grande e solitário artista.