domingo, fevereiro 27, 2005

Eu, por mim mesmo

Lenilton Lima


Fernando Kallon

Sempre achei que toda confissão
não transfigurada pela arte
é indecente.
Minha vida está nos poemas.
Meus poemas são eu mesmo,
nunca escrevi uma vírgula
que não fosse uma confissão.
(Mário Quintana)

Infância e juventude no Tirol. Antiga rua Revisão, hoje Nelson Fernandes, próximo à praça Augusto Leite. Naquele tempo ainda havia mangueira, campo de pelada e terrenos baldios: o paraíso dos meninos vadios.
Amizade com a família Rebouças. Todos músicos: Marcos (falecido), Marcelo, Marcílio e Marcone. Os acordes do violão em serenatas, bordando o silêncio nublado das noites suburbanas. A infância embalsamada eternamente na pirâmide da saudade. Os primeiros versos vaga-lumes bailados na sombra.
O sangue fervendo nas veias em ebulição das aventuras.
Sonhando com os olhos vendados.
Quebrar o “gato no pote” da rotina.
“Caminho com todos que caminham. Não poderia permanecer imóvel, assistindo a procissão passar” (Gibran).
Primeira carona, de navio, aos 16 anos para a Bahia via Recife e Maceió. Chegada noturna em Salvador. Navio atracando ao largo: meu primeiro “Descobrimento do Brasil”. Batuque de atabaques do candomblé e toques de berimbau. A magia e o mistério da malícia e da ginga do bailado da beleza negra enluarada no jogo de capoeira de Angola. “Salve o mestre Pastinha, salve os filhos de Zumbi, capoeira de Angola se pratica por aqui” como diria meu camarada e amigo do peito Iaponan Camafeu de Ogum.
Na madrugada, saveiros silenciosos que partem, navegando com suas velas brancas beijadas pela banda refrega do vento sudoeste. Proas apontadas para esverdeada tocha da estrela da manhã. Pendurada na cumiera do céu, como uma aranha luminosa, tecendo com seus raios sua teia na sombra, a estrela Aldebarã. No jardim nublado do tempo, a neblina aguando a rosa dos ventos. Navegar é preciso. Viver “nunca” foi preciso.
Calça o leme, finca o mastro, abre o pano, amarra os “tais”, aperta a mura, puxa a escota, que o vento é em popa, não precisa bordejar. Joga água no pano proeiro, que nos vamos marear pras águas lá de fora, das ondas de alto mar, do reino encantado da Rainha Iemanjá, Janaína, Inaê, Marbô, Dandalunda, Mãe Sereia, Princesa de Aiocá. Quantos nomes ela terá? Só o devoto saberá!
As canções praieiras de Dorival Caymmi: o guru musical do mar.
Bahia: o deslumbramento!
O amor à primeira vista. O sonho realizado deixa o poeta maltrapilho de alma coroada.
Bahia: o encantamento!
Bahia, que depois eu voltaria, como alguém que volta para a amada.
Bahia: “Jorge” para sempre “Amado” . Vida “noves fora”: poesia...
Meu coração, cigarra vadia cantando de noite, cantando de dia.
“Não vadeia Clementina! Fui feita para vadiar...”
Volta para Natal. Tirol. A avenida Alexandrino de Alencar, era a fronteira para o bairro de Lagoa Seca. Do outro lado, a turma da “barra”. Raul, Garcia, Bianor e Paulinho Marinheiro.
Turma da Barra com sua discoteca universal, que abriu ainda mais o leque musical. Naquele tempo não era bom se aventurar para os lados da avenida 4 sem um cabo de aço como cinturão e um canivete no bolso. Pare! Olhe! Escute! Como em sinalização de cruzamento de via férrea, é prudente você seguir as instruções do aviso ao transpor os limites do gueto potiguar, para evitar acidentes fora do trabalho. No morro e na favela, o “perigo” é uma máscara de espantar otários. Se você tem passaporte de malandragem, dirija-se à plataforma de embarque e boa viagem. Noel Rosa só pode nascer no jardim da boemia. Que fiquem quietos os espinhos comportados. “Purifiquem-se pelo pecado”, como já dizia Rasputin. “Poetas do mundo todo, uni-vos”.
Década de 60: Natal em efervescência cultural. A turma do poema processo, Dailor Varela, Falves Silva e sua extraordinária exposição no “Francesinha”. Zizinho me empresta Neruda que eu nunca devolvi, me esqueci. Amnésia alcoólica. Ainda bem. Francisco Borges “França” da avenida 7, que me apresentou a maravilha da literatura russa, Dostoiévski, Gorki, Gogol, Tolstoi, Turqueiev, Maiakóvski, Pusckin, Lermontov. O músico João de Deus me apresenta a Walter Varela, “Berbe”, que me levaria pela primeira vez a Maracajaú. Formação do conjunto musical “os Berbes”, do qual, juntamente com meu amigo ariano, Graco Legião, seria compositor e participaria de um Festival de Música do SESC.
Ida para o Rio de Janeiro.
Intercâmbio poético com poetas anônimos que circulam pelos jardins do M. A. M. Morada no bairro do Estácio. “Se alguém quer me matar de amor, que me mate no Estácio” (Luís Melodia).
Viagem do Rio de Janeiro para São Paulo de trem com Dieter Bischoff, um pintor andarilho de Bremen, Alemanha. Viajamos grande parte do interior de São Paulo. Estadia em Ilha Bela, na casa do pintor basco Fernando Odriozola. Volta para o Rio de Janeiro.
Festival de Música de Pedra Azul, em Minas Gerais. Novamente Salvador, ilha de Itaparica.
Aracaju, Maceió, Recife, onde me fixei um tempo na praia da Barra de Jangada, quando ainda era ainda uma pacata aldeia de pescadores. Olinda.
O movimento hippie assanhando a cidade como uma caixa de marimbondo. Amizade com a tribo pernambucana. Grupo Ave Sangria, de Marco Polo. Dom Tronxo, Marconi Notaro, Lula Côrtes. Conjunto Semente Proibida, do baterista Israel. Julinho do IPSEP em dueto de violão e flauta com Graco Legião. Morada um tempo na praia de Candeias, que a lua cheia na noite incendeia.
De volta a Natal. Depois de um tempo na praia da Redinha, fazendo dieta de cachaça com peixe frito e tapioca, novamente a estrada da “Canção da
Estrada Aberta”, como o poema de Walt Whitman, “On the Road” do beatnik Jack Kerouac.
Fortaleza, Canoa Quebrada. Teresina, São Luis, uma cidade encantada como Salvador e Natal. Belém do carimbó, do pato no tucupi, da maniçoba e do tacacá. Mercado Ver o Peso. Ilha do Marajó. Brasília, São Paulo. Santos. São Vicente. Novamente Natal. Praia do Meio. Molecagem na beira-mar. Rua do Motor. Morro de Mãe Luiza, Areal, Canto do Mangue. Rocas de todos os Canguleiros do mestre Itajubá.
Praia dos Artistas, Galeria do Povo, Partido do Povo Brasileiro, King Eduardo Alexandre, meu rei de “...e nem assim saberei”.
Maracajaú. O poeta hipnotizado por serpentes marinhas. Cantar as canções que Maracajaú canta dentro de mim. A continuação das canções “berbeanas” de Walter Varela, acalentando o silêncio noturno da aldeia adormecida. De manhã cedo, o grito de aboio de Dom Miguel Paiva chamando o gado. Pastoril Coco de Roda. Violões acompanhando modas praieiras. Pescaria de tresmalho. Caçoeira. Paquetes que trazem o caíco, jangada que vem de longe trazendo peixe graúdo. Pescaria de dormida das “cavalas”.
O “escaldaréu” debaixo dos coqueiros acompanhado de pimenta e cachaça. Confraternizações de amizade do povo do mar, meus amigos pescadores de Maracajaú, todos eles atracados no porto do meu coração. No reino da humildade, disfarçados palácios de palha.
Novamente gira a roda do destino me levando pra viajar. Areia Branca. Praia de Upanema. Lugar do meu amigo pescador “Budé” e de Francisco das Chagas, “o Raul de Upanema”, com a magia colorida de seus pincéis. Entrada, Praia Grande. Redonda, Morro Pintado, Cristovam, Ponta do Mel. Rosado, Macau, Diogo Lopes, Zumbi.
Perambulando pelo interior do estado com um parque de diversões, depois com a companhia do “Espanhol Circo”, do nobre Nelito.
Viajando com os ciganos, o povo Calon, “o povo do vento”, a magia, o mistério e o encantamento da raça cigana: peregrinação milenar da liberdade. Os acampamentos ao redor das cidades, na beira das lagoas, dos rios. A alma cigana não cabe dentro de uma casa. Eu já fui “juron”. Hoje, sou “kalon” de força absoluta nos versos do violeiro Ivanildo Villanova, exilado no quilombo de Sibaúma. Pipa, Tibau do Sul. Barra de Cunhaú, Baia Formosa, Redinha. Pirangi do Sul, Pirangi do Norte. Praia de Santa Rita.
Agora, no verde vale do Pium. Parceria com Edinho na música “Natal de João”, gravada por Cida Lobo. Compositor fundador do grupo Alcatéia Maldita, com diversas composições, entre elas, “O Pescador”, “Vela de Barco”, “Alçapão”, “Gavião de Penacho”, “Cio de Cobra”, “Ribeirando a Ribeira”, “Formigas Transando”, “Funeral Cigano”, “Campos de Algodão”, “Cavaleiros do Sabá”.
Parcerias com Raul Andrade, Graco Legião, João de Deus, Edinho e Jorge Macedo.
Recentemente fazendo trabalho com uma letra “Viola Feiticeira” com uma parceria musical de Tertuliano e Nagério. Autor de mais letras: “Tenda dos Orixás” com composição musical de Maurício Zaratustra Queirós. Poeta. Sem profissão definida nem indefinida. “Aquele que não vive seus dias no reino dos sonhos, será sempre escravo das horas” (Gibran).

por Alma do Beco | 2:24 PM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

.. .. ..

.. .. ..

Recentes


.. .. ..

Praieira
(Serenata do Pescador)


veja a letra aqui

.. .. ..

A imagem de fundo é do artista plástico e poeta Eduardo Alexandre©

layout by
mariza lourenço

.. .. ..

Powered by Blogger

eXTReMe Tracker