Angelo Desmoulins Tavares
Edgar Allan Pôla
Aírton estava preocupado. Jottoh, o Ângelo Desmolin Tavares, já chegara pra lá de melado e logo se dirigiu para o fundo do bar. Foi juntando mesas numa fila interminável e chamando pessoas.
- Hoje é tudo por minha conta. Não é, capitão?
O capitão Dennis Touran não perdeu tempo:
- Mas é lógico! E quem está duvidando? Bigode, desce outra ampola super gelada!!!! De 600ml, faz favor!
Da churrasqueira completamente tomada da mais suculenta e legítima picanha argentina, vinha o cheiro convidativo da carne na grelha:
- Toque fogo!
Era Cornélio Neto, animado diante dos proclamos do velho Jottoh, cabelo tinindo de preto, obra de tintura carinhosamente providenciada pela secretária recém-contratada, Sandra Shirley, que primava no trato do misterioso e taciturno Corcunda de Casa Amarela.
- O velho é vaidoso. Imagine que tive de trazer dez camisas para ele escolher uma...
Francinha chega e vai logo interrompendo a conversa:
- Ângelo, tem cigarro, aí?
- Deixei no carro... Capitão, resolva aqui a parada da senhora Aguiar.
Cigarro providenciado, afundado em sua cadeira de diretor de cinema, com direito a nome pintado e tudo, o velho, sem ter dispensado as antigas havaianas, continua a conversa.
- Francinha, telefone para o João e diga para ele vir aqui no Meia Meia Quatro que tem cem pratas para ele. Não é porque a Prefeitura não paga que ele vai ficar sem dinheiro. É só cantar a Praieira...
Escorado no balcão, Bigode assistia incrédulo a tudo aquilo.
- Só quero ver quem é mesmo que vai pagar essa conta...
E você ainda não soube, Bigode? O Jottoh ganhou na Mega Sena. Sozinho. Tá montado na nota e veio comemorar...
- Não tá vendo que isso é mentira, Clarindo? O Jottoh nunca comprou bilhete de loteria...
- E não comprou mesmo. Achou, ali, na Praça Padre João Maria, num banco, defronte a Nazareno. O velho pegou o bilhete, viu que estava na validade e botou no bolso. Depois, acendeu ao santo uma vela ali encontrada, e fez a promessa:
- Se ganhar, eu fecho aquele bar e dou a maior festa! E de portões abertos...
- Está aqui, hoje, para pagar a promessa.
A FESTA
Quem chegava era logo informado da novidade: cerveja na canela para todo mundo, cachaça, uísque, o Macieira para Luciano, e churrasco das melhores carnes: maminha, cupim, filé, contrafilé, alcatra, bisteca, porco, frango a vontade e para todos os gostos, lingüiça de Caicó encomendada por Berg e até o ressuscitado caldo da casa, antes, famosa iguaria única do vasto cardápio.
Contratados para cantar, Géo Ventania, vinda especialmente da Paraíba, fazia duo com Carlinhos Bem. O coro, também devidamente remunerado, estava composto de cinco vozes: Help, Mossoró, Volontê, Sylvia e Leninha, a Maria José. Tudo numa produção contratada, à vista, ao babilônia, também responsável pela documentação em foto e vídeo.
Radiante, Jottoh distribuía gentilezas:
- Aírton, um copo de cristal aqui pro meu amigo Alexandre. Da Tchecoslováquia, faz favor. Esse careca merece...
Convidados especiais, Zizinho, da Central Única, e a deputada Fátima Bezerra. Sondado para fazer a crônica da festa, Valério Mesquita foi dispensado de última hora. Jottoh não iria cometer uma injustiça assim tão grande com o Edgar, reconheceu o crítico João de Moraes.
Já com a recém-nascida no colo, o casal Paulinho e Clésia ocupavam o lado direito do anfitrião e não prestavam serviços. Cinco garçons devidamente paramentados, com direito a gravata borboleta, impecáveis camisas brancas de mangas longas, abotoaduras e calça preta, obedeciam aos comandos de Aírton, ainda surpreso com aquela invasão de profissionais em sua seara.
- Doutor Ângelo, tem alguém aí fora procurando por você. Traz um bolo que parece até de casamento de noiva socialite, anuncia Pedro Pereira.
- Mande entrar! A conta já está paga. Por favor, verifique se beijos e brigadeiros, salgadinhos, estão devidamente acondicionados e longe das formigas...
Mal o imenso bolo adentra o recinto, chega um emissário dos Correios.
- Telegrama para o doutor Ângelo Desmolin.
- Pode abrir, doutor Aírton! Diz de seu trono o anfitrião. E pode lê-lo pra gente, solicita.
Aírton abre o telegrama e, mais uma vez surpreso, diz ser da Casa Civil do Governo do Estado.
- É do Garibaldi. Pergunta se pode vir para a festa...
- Ô, Sandra! Pegue aí meu celular e ligue pro gabinete e diga lá pro Luís Eduardo que não estamos convidando autoridades para hoje. Quem sabe, na próxima semana...
Num canto meio isolado, Marcelo Fernandes e Marcelus Bob sonham possibilidades para o Ateliê Unir:
- Com o velho montado na grana, podemos pensar em até comprar um daqueles prédios da rua Chile... Ou alugar uma lojinha no Via Direta outlet... Comprar aquele terreno baldio do mirante Chico Miséria...
- E já imaginou a quantidade de coisas que chegará para o velho? Tudo da melhor qualidade, direto de nova Iorque, Londres, Paris, Juazeiro e Petrolina?
Luciano Almeida que estava do lado de fora num grupo integrado de Liége, Jácio, Verinha, Ramos e Falves Silva fazendo o quê não se sabe, chega com a notícia:
- O peru encomendado à Nick Buffet chegou. Coisa, no mínimo, para uns doze ou quinze quilos. Imenso...
Em baixela de prata, trazido por uma morena em trajes sumários, o bumbum boa parte de fora, arrepiando a galera, o peru chega à cena da ceia.
- Esse é só para a diretoria, avisa Desmolin, anunciando em seguida que outros dois exemplares já estão encomendados.
Duas da tarde, os rojões espoucam invadindo ouvidos de gente desprevenida da Gonçalves Ledo. Anões segurando balões voadores coloridos invadem o pedaço. A seguir, palhaços fazendo firulas, dando cambalhotas, anunciam o show de Dimas Carlos, do Zás Trás: Brasil in Concert.
Tudo é festa e o anfitrião está satisfeito. Dispensa a cerveja e os uísques de 32 anos devidamente providenciados para as comemorações, e toma duas doses de cana: Ipioca legítima, da primeira safra. Pega no sono e ninguém ousa perturbar sua paz celestial.
Fim de festa, Aírton numa trabalheira imensa de recolhimento de mesas, cadeiras, et coetera e tal, percebe que alguém ainda permanece no ambiente, em sono ferrado, atrás de um carro de venda de churros.
Acorda, Jottoh! A festa acabou.
- Acabou, eu sei. Todos ficaram satisfeitos... Gastei, mas gostei.
- Como gastou? Você ainda está devendo as pingas que tomou...
- Devendo, como? Eu não tinha pago tudo com antecedência? Os perus, as picanhas, o coro, os músicos, os espetáculos, o foguetório? Cadê Sandra Shirley, minha secretária? E o meu motorista? Será que também levaram meu celular?
Meio atrapalhado, sem bem entender o que estava se passando na cabeça do velho bêbado, ali, ainda estendido, dizendo besteira, Aírton dá a sentença:
- Ou paga ou não entra mais aqui! Tá pensando que está rico, é velho? Que ganhou na loteria? Eu bem que avisei pro Dennis que não lhe desse aquela almofada. Que deixasse você dormindo no chão duro. Almofada faz mal a sonho de bêbado. Amolece, faz o cara acordar pensando que está no paraíso... Sai dessa, Mané! E pague logo as canas que você tomou!
Sem um níquel no bolso, Jottoh se levanta, triste, desolado, certo de que tudo não passara de um bom sonho, generoso sonho, e caminha para o portão.
- Bote na conta do doutor Eduardo...
- Mas Eduardo não bebe cachaça...
- Então chame a polícia. Mande logo prender esse velho que lhe ama e só lucros traz para essa bodega...