sábado, janeiro 29, 2005

A mulher da louça

A MULHER DA LOUÇA
Mário Henrique Dantas de Araújo

Dia das Mães. Família que não mais almoça junto todo dia se reúne numa festa matriarcal.
O marido da minha mãe senta na cabeceira, eu fico do lado. Nunca pensei que o marido da minha mãe pudesse não ser o meu pai. Mas isso é tão normal!!! Talvez não seja normal eu ficar sem coragem de decobrir a imagem renascentista daquela mulher seminua pintada na louça do prato, com arroz, filé, camarão e salada. Louça desenhada a ouro que a minha mãe guarda desde o seu primeiro casamento. Uma porcelana com quase50 anos. É realmente uma obra de arte. Eu já tinha me apaixonado outras vezes por essa mulher, até porque no período da minha existência só estive com ela em ocasiões assim, natal, reveillon, aniversários, dia das mães, dia dos pais... Acho que é por isso que ela sobrevive e nunca morre na minha lembrança, e a minha paixão também. É uma bela mulher coberta apenas por um pano vermelho entre as pernas. Uma perfeição de semblante, cor, luz e estética física. Ela parece chamar para os mistérios da sedução e do amor, apenas com sua expressão calada, criada pelo artista que infelizmente não sei quem é. Pensava que esta paixão era coisa de viagens insólitas minhas, mas não. Depois de tanto tempo sem vê-la, senti a mesma coisa que senti no natal de 75, quando eu me apaixonei pela primeira vez. Acho que é o meu amor a arte, ou uma transferência saudosista de desejos perdidos, sei lá. O que importa é que neste momento consegui sentir prazer no belo que se revela numa pintura assim.
Encantado, fiquei minutos a apreciar tamanha criação. Lógico que todos notaram que era mais uma "loucura" minha. Até riram da minha "besteira". Não sabiam que apenas estava celebrando a história da família relacionadaà arte. Porque aquela louça, mesmo sendo de porcelana, sobreviveu intacta por quase 50 anos, e nós, que somos de carne e osso, já nos quebramos tanto? Enfim, tive que cobri-la de alimento. Um fomento de adesão ao almoço familiar. Fui pelas beiras. Cobri a paisagem em volta do seu corpo com salada. Botei uma tira de filé em suas pernas, um camarão em seu umbigo (um piercing ecológico), arroz em seus cabelos, e, por fim, com o dedo indicador, derramei uma gota de vinho em sua boca de Eva. Foi um brinde.
Peguei os talheres pesados e afastei o que cobria o seu rosto (gosto decomer com talher pesado, a comida fica mais leve). Degustei tudo brincando de despi-la aos poucos. Com garfo e faca fui tirando suas vestes gastronômicas. Primeiro as pernas, depois o abdômen, até chegar nos seios da divina ceia. Ouço um irmão dizer: esta porcelana ainda existe, é "Porcelana Real".
É claro que ela existe e sempre existirá. Mas real mesmo é entender que o amor é como ela, só sobrevive se o guardarmos a sete chaves, e, para que continue vivo e resistente, tem que fazer como minha mãe faz: ela mesma é quem lava a sua louça, com muito cuidado para não arranhar a imagem. O melhor de tudo foi que antes de despedir-me dela, levaram o meu prato, sem que eu pudesse lamber tudo primitivamente, para que não sobrasse nenhum resquício sequer de biodegradação. Aí veio a sobremesa. Lá estava ela na taça, na jarra, na xícara e no pires. Então, depois de tê-la bebido, depois de tê-la comido, percebi que ela não se animou. Continuou desenho inanimado, mas muito mais viva do que tudo que já pude ter, simplesmente porque em seu silêncio estático me envolveu, e eu descobri com ela, que talvez este seja meu único amor eterno, apesar de todos os outros terem sido os verdadeiros.
Esta imagem apareceu tão forte em mim neste dia, que instintivamente pedi a minha mãe aquele prato de presente para botar na minha estante. Depois desisti, não levei o prato. É melhor não tê-la na estante cotidianamente para que possa desfrutá-la nestes raros instantes familiares.
Penso que só assim será para sempre.

12 de maio de 2002

por Alma do Beco | 3:01 PM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

.. .. ..

.. .. ..

Recentes


.. .. ..

Praieira
(Serenata do Pescador)


veja a letra aqui

.. .. ..

A imagem de fundo é do artista plástico e poeta Eduardo Alexandre©

layout by
mariza lourenço

.. .. ..

Powered by Blogger

eXTReMe Tracker