domingo, abril 10, 2005

À BOCA DA NOITE


Pôr-do-sol no Potengi


Um dia desses precisei marcar um encontro com alguém. Marcamos um local e quando surgiu a pergunta "A que horas?" respondi: "À boquinha da noite." O meu amigo riu, perguntou se a noite ia comer alguém, uma vez que tinha boca.

Mas não é isso, minha gente. Isso é coisa da nossa cultura, da nossa história, da nossa formação. Hoje, depois da invenção do relógio digital, toda pessoa que tiver dez reais compra um desses em qualquer esquina, mas quando eu era criança relógio era luxo e o horário mesmo do dia-a-dia era determinado pela posição do sol durante o dia e pelo cantar do galo na madrugada.

As denominações das horas eram assim mesmo, poéticas e saborosas, e se o meu amigo fosse um pouco mais velho ou tivesse sido criado no interior saberia que "à boquinha da noite" é assim que escurece de todo, seis e meia, sete da noite, uma vez que a "boca da noite", sem diminutivo, é a noite já firmada, já estabelecida, oito horas da noite. Era a hora das visitas. "Que horas eu passo lá, Comadre?" "Passa na boca da noite", a outra respondia. Isso numa época em que, não existindo ainda a televisão com suas novelas, a gente sempre recebia gente em casa para conversar. Mamãe sempre se levantava no "quebrar da barra", que era às cinco horas da manhã. E meio-dia nunca era meio-dia simplesmente: era "pingo-do-meio-dia". Uma hora da madrugada o galo cantava a primeira vez, e em "Macbeth", de W. Shakespeare, o porteiro do castelo informa: "Estivemos bebendo até o primeiro cantar do galo."

Outra hora cheia de mistérios era no "pender-do-sol", ou seja, depois do almoço, passado o "pingo-do-meio-dia", quando o Sol começa a "cair", uma hora da tarde. No pender-do-sol o mundo fica parado, sem movimento, nada se move. Mamãe dizia: "Parem com esse barulho, que agora até o mundo está parado". A louça lavada, Papai já havia saído para o trabalho e ela queria cochilar um pouco: então saía-se com essa, de dizer que o mundo havia parado, para que a gente parasse também de fazer barulho. Até hoje, quando leio o magnífico poema de Carlos Drummond de Andrade "A Máquina do Mundo" é como se estivesse nessa hora, no pender-do-sol, no mundo parado, imóvel, sem nenhuma agitação.

Esse negócio de horário é uma coisa engraçada. Quando estive em Apodi, no extremo Oeste do Rio Grande do Norte, acordava às oito horas e quando saía para tomar café da manhã na pousada em que me hospedava dava de cara com uma mesa lotada de homens comendo pratos descomunais de buchada. Buchada, sim, às oito da manhã. Para essas pessoas, que haviam acordado às quatro para trabalhar na lida com o gado, já era hora do almoço. E para mim, o apetite do café da manhã se acabava ali mesmo, varrido para longe pelo cheiro enjoativo da buchada, que gosto de comer, mas nunca às oito da manhã.

Nesta cidade Natal, há uma hora mágica: no finalzinho da tarde, o Sol fica em uma certa posição que, por alguns minutos, torna o mundo todo cor-de-rosa. Dura pouco. Dez minutos, às vezes nem isso, e deve ser um fenômeno óptico, de refração, ou coisa parecida. Mas não existe hora mais linda nesta cidade. Vale a pena largar tudo o que você estiver fazendo para se aprofundar naquele tom rosa-dourado, deixar que aquela cor lhe banhe, lhe ilumine, lhe enfeitice, lhe mesmerize, em um fenômeno que não é marcado pelos exatos e frios ponteiros do relógio mas que por isso são ainda mais encantadores. Aproveite.

E para concluir todas essas recordações de horas e de relógios, na década de 1960 Papai comprou para Mamãe um relógio como presente do Dia dos Namorados. Era um relógio para colocar na sala, e tocava um carrilhão a cada hora e a cada meia-hora. Em estilo "funcional", todo colorido, ficava na sala-de-jantar e passávamos a noite inteira ouvindo suas batidas. Papai, poeta, entregou o relógio a Mamãe com esta quadrinha: "Estes ponteiros, querida/ Marcarão, harmonizados/ As horas da nossa vida/ No Dia dos Namorados." Lindo, não?


Clotilde Tavares

por Alma do Beco | 3:20 PM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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