Centeio e sonho
O mundo seria outro se cada um conhecesse o seu espelho. Se a ele mirasse sem as máscaras das manhãs, lavado o rosto de sonhos banhados em ego.
As relações decerto seriam outras.
A imagem não esconderia falsidades nem hipocrisias. Não acataria as pedras atiradas aos pecados santos de quem pior nunca foi; não se deixaria dourar, pobre alma de latão, ali, diante de si.
O lado não virtual do espelho não se pergunta: que fiz de mim ou o que fui? O que fiz, o que deixei? Não se indaga. O essencial não importa, mas as mentiras refletidas.
Seu lado não virtual afoga-se em maquiagem perfeita de si mesmo.
Nunca duvida: sou o cara. Presa ao suporte, sua imagem ri da cena. Abomina, mas aceita. Como fugir?
Nem as marcas dos anos modificam o cotidiano encardido que ficou. Um dia a mais; a menos, nada modifica o transmutar das horas.
O eu virtual tem limites. O que está diante de si, talvez nunca: é a máscara do império quase sempre estampada; é o senhor de todos os atos humanos e sublimes a mirar-se diante do que nada vale. Porque o que vale, o que é e será, é ele: o senhor das horas absolutas e sem pecados, puro, imaculado, a desdenhar da realidade em volta. Dos amigos, das situações, até dos perigos que não chega a ver diante de si.
Os homens de caras lavadas diante dos espelhos são deuses. Perfeitos, não enxergam. Só os mortais da vizinhança não sabem vê-los assim: esses não prestam.
Os homens diante do espelho navegam na ambigüidade de si mesmos. Não se sabem joio: sonham-se trigo.
Jamais amassarão o pão do centeio consumido. Consomem. Consomem-se.
E ainda se acham melhores do que os que derramam o suor gestor de sua vã egolatria.
Neuza Margarida Nunes
Barro Vermelho, Natal/RN, 1 de fevereiro de 2005
Analisando o gás da maldade