Nos últimos tempos, nada de novo aconteceu em Natal de maneira definitiva. Tudo de novidade, no aspecto sócio-cultural, sempre é passageiro. Peças de teatro, apresentações musicais, festivais de curtas e longas metragens, apresentações circenses, enfim, tudo o que desperta a curiosidade e semeia conhecimento na espiritualidade humana aparecem e desaparecem deixando apenas saudades.
Mas, toda regra tem exceção. Está a completar um ano que a velha Ribeira, cansada de guerra, está hospedando o Café Salão Nalva Melo. Hora café, hora salão, e, assim, entre um corte e outro, um artista regional se apresenta mostrando seu talento e o seu trabalho. Sou freqüentador quase assíduo, mesmo sem carteirinha, das noites de segunda para desfrutar do que há de melhor na musicalidade potiguar.
De tudo que o Café proporciona o que me chama mais atenção é a platéia. O ecletismo e as diferenciações tribais me encantam e os perfis mais interessantes cruzam as mesas em busca daquilo que jamais se conhecerá. Atores, atrizes, artistas plásticos, músicos, literatos, poetas e “poetizas” (essa é para Cristina Tinoco) iluminam olhos semianalfabetos como os meus. A penumbra, a fumaça dos cigarros e o som dos acordes potiguarinos fazem que a minha Água Tônica fique mais saborosa.
Entre as conversas e as músicas ouço as velhas vozes da Ribeira na algazarra em seu grito de guerra: “Xaria não desce! Canguleiro não sobe!”. Não mais existe cabeças partidas, nem muito nariz amassado, nem muito braço torcido e nem tão pouco muita prisão como escrevera o mestre Cascudo nos tempos de outrora.
As mesas distribuídas no salão, a disputa por um lugarzinho melhor, a velha “radiola” de ficha no canto da parede, a antiga geladeira meio azul meio verde na cozinha, o velho piso do Edifício Bila me fazem viajar e acreditar que a Ribeira ainda vive. Vejo-me em plena década de quarenta. Os intelectuais falando em guerra, em política, em mulheres. Estas, por sua vez, belas e abusadas em suas maquiagens importadas dos EUA e seus vestidos coloridos. Chapéus, boinas e guarda-sóis descansam perto da porta de entrada.
Continuo com a minha Água Tônica a sentir o cheiro dos perfumes do passado. Os sons dos lustrados sapatos no entra-e-sai do Café Salão, ainda na ilusória década de quarenta, misturam-se com os vôos rasantes daqueles benditos americanos e suas máquinas enlouquecidas.
Alguns olhos me encontram perdido no êxtase deste momento. Alguns sorrisos me são lançados e me despertam o desejo de sempre sonhar. Entre a fumaça dos cigarros vejo Tyrone Power e Ava Gardner entrarem e tomarem a atenção de todos. O calor da noite me inspira e, ainda encantado por Ava, tento cantarolar a marchinha meio brasileira, meio americana que sai dos acordes do musico “falsificadamente” nativo.
Quem me dera sair dali e dormir no Grande Hotel com a mais bela mulher dessa Ribeira. Acordar e observar o coreto da praça central. Tomar café na varanda e folhear o jornal matutino e encontrar as “Actas Diurnas” estampadas ao lado da fotografia, em preto e branco, de Getúlio e Roosevelt...
Volto a minha realidade. Não existe mais nada, apenas lembranças e desejos. O mestre já se faz morto. O coreto perdeu, ao longo do tempo, a sua funcionalidade. O hotel deixou de ser grande. A Ribeira adormece. Minha Água Tônica já não mata mais a minha sede. Não ouço mais as algazarras das pessoas pelas ruas.
Nalva e seu Café Salão me fizeram feliz, mesmo que por breves instantes. Retiro-me discretamente para não magoar as minhas lembranças. Dou as costas ao velho Bila. Atravesso com passos curtos a rua sem muito movimento. Cruzo as avenidas desertas e esquecidas e meus olhos negros, tristes e solitários se enchem de saudades.
Creio, hoje mais do que nunca, que plantei, em tempos passados, os meus pés naquele lugar. Vivi sem medo de conhecer a vida e hoje sou apenas resquícios de tempos belos e majestosos.
José Correia Torres Neto – 25 de julho de 2003