José Alexandre Garcia
6:45 horas da madrugada. De uma mesa no Tabuleiro da Baiana,
procuro, através de uma xícara de café, que a cafeína neutralize os
efeitos de uma seresta que se prolongara até as 3:00 horas. Ao mesmo
tempo, vigio os movimentos de meu pai, até que, britanicamente, às
7:00 horas, ele abra o escritório. Nesse preciso momento, ele
conversava com o comerciante Carlos Guerra, o contador José Cocentino
e o maestro Alcides Cicco. Aposto todo o dinheiro que tenho no bolso
que o assunto é passarinho. Mas de vez em quando, ele consulta o
relógio.
Em dias como esse, quando abriríamos o escritório para nada
fazer, porque não há navio no Porto nem despacho para fazer, é que
eu apresentava as minhas reivindicações para que não tivéssemos
obrigatoriedade na hora da abertura. E argumentava para ele:
- Se preciso fosse, faríamos serão ou chegaríamos até às
6:00 horas da manhã, como muitas vezes tínhamos feito. Nós não
éramos comerciantes para seguir o horário do comércio, éramos uma
espécie de funcionários públicos, nomeados pelo presidente da
República, e, depois de concurso. Apenas éramos representantes
perante a Alfândega, perante os comerciantes.
Papai não queria nem discutir o assunto e o chefe era ele.
Para que reclamar? Olho em derredor e procuro encontrar alguns
mártires como ele.
Numa mesa mais adiante, o balconista Osir Lago, que depois
seria um grande comerciante de camisas, traçava, com gosto, uma
cartola, especialidade da casa. Ou seja, duas bananas fritas,
recobertas por um pedaço de queijo do sertão, e tudo isso polvilhado
com generosas porções de açúcar e canela.
Do ângulo que dava para o outro lado da praça Augusto Severo,
cinco rapazes tomavam cerveja, uma após outra. Procurei entender o
que eles diziam. Estavam fazendo contundentes discursos dirigidos
aos comerciários que por ali transitavam apressados para não
chegarem atrasados aos seus estabelecimentos.
- Vocês estão a soldo do capital colonizador! Para que
enfurnarem-se em velhos e feios casarões num dia tão bonito como
esse? Por que não aproveitar o sol e ir para a praia? Fariam muito
melhor negócio!
Jardelino Lucena, o dono do Tabuleiro, puxou uma cadeira e
sentou-se ao meu lado. E destilava toda a sua bílis contra os
baderneiros.
- Corja de malandros. Desocupados. Não sei onde estou que
não chamo a polícia!
Procuro contemporizar. Um meio termo.
- Precisa não, seu Jardelino. Isso são rapaziadas. Coisas
de jovens...
Jardelino voltou à carga:
- Você também é jovem e está esperando que seu pai abra o
escritório para começar a produzir. É disso que o Brasil precisa.
Aí, eu penso de mim para mim:
- Se Jardelino soubesse da vontade que tenho de mandar tudo
às favas e solidarizar-me com os alegres rapazes...
Nisso, um moleque, em desabalada carreira, freia junto à mesa.
- O senhor é que é doutor Alexandre?
Balancei a cabeça.
- Dr. Roberto Freire está ali na Confeitaria Delícia e pede
o seu especial favor de ir lá para servir de testemunha.
Não deixei nem que o das costas d'África, como diria o
tabelião Miguel Leandro, terminasse o recado.
- Vou lá o quê? E me auto-felicitei. Dr. Roberto passa uma
noite de esbórnia e no fim da farra trava uma discussão com quem quer
que seja, mete-se numa briga, e agora quer que eu sirva de testemunha?
Ser testemunha é uma das coisas mais chatas e
contraproducentes que existe. Você perde horas esperando numa ante-
sala por um delegado qualquer, muito do mal encarado,
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agüenta suas perguntas cretinas e, às vezes, é nivelado ao acusado.
No mínimo, o que se ganha é um inimigo ou inimigos para o resto da
vida.
Peço a conta e quero dar o fora mais que depressa, antes que
outro mensageiro apareça.
Dito e feito. O moleque reapareceu, perguntando
amavelmente:
- O senhor é Alex, o grande jornalista esportivo da
cidade?
Mesmo numa manhã tão insípida, amaciar o ego é coisa boa. E
me dispus a ouvir.
- Dr. Roberto está convidando-o para o lançamento de um novo
e sensacional esporte. E pede encarecidamente que o senhor dê um
pulinho lá, nem que seja por cinco minutos.
Então dirijo-me para a Confeitaria.
Da mesa, Roberto vem ao meu encontro, abraçando-me
profundamente.
- Estamos treinando para lançamento, o mais breve possível,
de novo e sensacional esporte nacional, que tenho certeza será um
retumbante sucesso. Já telefonei para Sylvio e o governador ficou de
telegrafar para João Havelange pedindo o seu incondicional apoio.
E, no mesmo tom:
- Você sabe os telefones de Humberto Nezi e João Machado?
E eu respondo:
- De Nezi, eu sei. É na Ceará-Mirim, junto ao meu irmão
Odilon. Agora, saber onde João Machado pernoitou é trabalho para
pitonisa. Ele tem três mulheres, e a cada noite fica na casa de
uma. Isso, se não tiver variado...
E Roberto, tomando nota:
- Você lembra daquele turco, seu amigo, que defendeu o Rio
Grande do Norte no II Campeonato Brasileiro de Futebol de Salão?
- Sei. Mas, a bem da verdade, é preciso que se diga que
eu não tenho essas intimidades todas com Ibrahim Tebet.
Roberto parou um pouco e disse:
- Pois não foi isso que eu ouvi lá no Rio, na semana
passada. Ibrahim falava da emoção que sentiu ao receber o diploma de
benemérito da FNFS quando você fez com que o ginásio todo, de pé, o
homenageasse com uma grande salva de palmas. E não tinha vergonha de
dizer que chorou.
E acrescentando:
- João Machado me disse que você tinha conseguido até o andor
do Senhor dos Passos para, em procissão monumental, desfilar com ele
no grande ponto...
- Estórias de João Machado! É preciso tirar 50, 60% de tudo
que ele diz... Mas vamos ao esporte. Como é o seu nome?
Ele, com a cara mais lambida do mundo:
- Cuscuz ao alvo!
Então me apercebi de dois vendedores de cuscuz, parados
juntos à Confeitaria, de onde Roberto e Luiz de Barros se abasteciam
para atingir o alvo móvel, o motorista cancão.
E Roberto, explicando:
- Quem atirar a peça com maior perfeição - na boca -, ganha
20 pontos. No rosto, vale 10 pontos. Mas é terminantemente
proibido atingir os olhos ou o nariz.
Eles convidaram então os áulicos que sempre os acompanhavam
respeitosamente à distância, fazendo ou dizendo qualquer coisa com o
prévio consentimento da dupla, para, naquele caso, derramarem
elogios ao esporte recém-inventado por Roberto.
E foi uma saraivada de cuscuz sendo atirada.