José Alexandre Garcia, Confeitaria Delícia II
A figura de Cancão sempre me impressionou muito. Toda vez que
me encontrava com ele, tinha vontade de pedir que tirasse a máscara.
Era, sem tirar nem por, a cara de um palhaço. Boca grande, nariz
proeminente, careca, um ventre bastante volumoso que os seus amigos
confundiam com bucho de mulher grávida - e sempre estavam a
perguntar quando era o nascimento da criança. O seu andar era o mais
desajeitado possível, com enormes botas e, como João Machado dizia,
os seus pés estavam sempre marcando 2:10 (horas).
Naquele dia do lançamento do cuscuz ao alvo, distanciei-me
dos outros e perguntei:
- Está gostando de sua nova missão, Cancão?
E ele, na sua filosofia barata de servidão humana, definiu-
se:
- Manda quem pode, obedece quem tem juízo!
Foi uma das poucas vezes em que não usou o seu vocabulário
sempre relacionado com coisas de automóvel. Por exemplo, quando
queria almoçar, dizia que ia abastecer ou encher o tanque.
Homem de bem, ele dizia que queimava óleo 40. Quando via uma
mulher bonita, comparava-a a um automóvel numa exposição, que todos
queriam ver, experimentar e comprar. Se diziam que alguém era
homossexual, ele dizia que o dito cujo estava saltando de marcha.
Ele tinha uma noiva. A bem da verdade, eu nunca a vi, mas
sobre ela, o motorista sempre estava dizendo, falando ou
comentando. E, com entusiasmo, dizia:
- Ela é linda, doutor! Parece uma baratinha Ford V-8 de cor
encarnada e capota arreada. Muitos, de brincadeira, chegavam a
ele para contar certas facilidades de Roberto com a sua querida.
- Cancão, doutor Roberto estava ontem pegando nos peitos de
sua noiva.
Cancão nem, nem...
- Pegando nos faróis? Não tem importância, não! Eu só não
quero que ele mexa na caixa de marcha. Você sabe como é, mexendo no
motor, o carro nunca será igual.
Cancão tinha uma singularidade que inclusive foi citada no
primeiro livro das Acontecências: ele gostava de criar cobras.
Nunca ficava sem uma ou duas em seu poder. Por vezes, Cancão saía da
linha como todo mortal, e entrava na contramão. Bebia, fazia
arruaças, acabava preso.
Roberto, então, fazia-se de patrão inflexível. Demitia-o
sumariamente. Ele ficava pelos cantos, arrependido como cachorro, e
doido para voltar a seu posto. Numa das vezes que ele estava na
pior, Zé Areia ofereceu os préstimos de seu quarto para ele dormir.
Mas, com o correr dos dias, o irreverente vendedor de bilhetes
começou a notar a besteira que tinha cometido: Cancão não gostava de
tomar banho; cuspia no chão; e era de higiene muito pouco aceitável.
Depois de um mês, Zé Areia procurou uma saída para livrar-se
da sua indesejável companhia.
À noite, quando deitou-se e procurou o travesseiro, sentiu
uma coisa viscosa no seu lugar: era a própria cobra.
Foi a gota d'água.
No dia seguinte, quando Zé Areia encontrou Cancão numa roda
de motoristas, perfilou-se e comunicou:
- Cidadão Cancão, quero comunicar-lhe que o senhor mudou-se.
E não precisa se incomodar. Já paguei um carroceiro para deixar os
seus trastes, inclusive a própria cobra, no bar de Áurea.
E, procurando uma coisa para rebater Zé Areia, Cancão lhe
disse:
- Aposto cem cruzeiros que você não vendeu hoje um bilhete de
loteria.
- Vendi.
E Cancão retrucou.
- Então, coloque em cima do paralamas os seus cem
cruzeiros.
Zé Areia notou logo a diferença.
- Você, ontem à noite, estava sem dinheiro. E como é que me
aparece hoje podendo gastar cem cruzeiros numa aposta?
De repente, veio à luz:
- Você voltou a trabalhar com o doutor Roberto...
E Cancão, vitorioso, na maior das alegrias:
- E eu posso deixar de trabalhar com um homem que parece dono
da casa da moeda?
É preciso que se diga do moral dessas pessoas. Eu nunca me
esqueci de uma história que me contaram, a de que Roberto, chegando a
uma casa, e notando que Cancão estava muito interessado na mulher do
homem, deu a seguinte ordem:
- Cancão, beije a dona da casa!
Desajeitadamente, Cancão obedeceu.
- Agora, pegue na buceta dela!
Cancão ficou atarantado. Mas o dono da casa e marido disse
para Cancão:
- Pegue, o doutor Roberto não está mandando?