domingo, janeiro 30, 2005

A figura de Cancão

A FIGURA DE CANCÃO
José Alexandre Garcia, Confeitaria Delícia II

A figura de Cancão sempre me impressionou muito. Toda vez que
me encontrava com ele, tinha vontade de pedir que tirasse a máscara.
Era, sem tirar nem por, a cara de um palhaço. Boca grande, nariz
proeminente, careca, um ventre bastante volumoso que os seus amigos
confundiam com bucho de mulher grávida - e sempre estavam a
perguntar quando era o nascimento da criança. O seu andar era o mais
desajeitado possível, com enormes botas e, como João Machado dizia,
os seus pés estavam sempre marcando 2:10 (horas).
Naquele dia do lançamento do cuscuz ao alvo, distanciei-me
dos outros e perguntei:
- Está gostando de sua nova missão, Cancão?
E ele, na sua filosofia barata de servidão humana, definiu-
se:
- Manda quem pode, obedece quem tem juízo!
Foi uma das poucas vezes em que não usou o seu vocabulário
sempre relacionado com coisas de automóvel. Por exemplo, quando
queria almoçar, dizia que ia abastecer ou encher o tanque.
Homem de bem, ele dizia que queimava óleo 40. Quando via uma
mulher bonita, comparava-a a um automóvel numa exposição, que todos
queriam ver, experimentar e comprar. Se diziam que alguém era
homossexual, ele dizia que o dito cujo estava saltando de marcha.
Ele tinha uma noiva. A bem da verdade, eu nunca a vi, mas
sobre ela, o motorista sempre estava dizendo, falando ou
comentando. E, com entusiasmo, dizia:
- Ela é linda, doutor! Parece uma baratinha Ford V-8 de cor
encarnada e capota arreada. Muitos, de brincadeira, chegavam a
ele para contar certas facilidades de Roberto com a sua querida.
- Cancão, doutor Roberto estava ontem pegando nos peitos de
sua noiva.
Cancão nem, nem...
- Pegando nos faróis? Não tem importância, não! Eu só não
quero que ele mexa na caixa de marcha. Você sabe como é, mexendo no
motor, o carro nunca será igual.
Cancão tinha uma singularidade que inclusive foi citada no
primeiro livro das Acontecências: ele gostava de criar cobras.
Nunca ficava sem uma ou duas em seu poder. Por vezes, Cancão saía da
linha como todo mortal, e entrava na contramão. Bebia, fazia
arruaças, acabava preso.
Roberto, então, fazia-se de patrão inflexível. Demitia-o
sumariamente. Ele ficava pelos cantos, arrependido como cachorro, e
doido para voltar a seu posto. Numa das vezes que ele estava na
pior, Zé Areia ofereceu os préstimos de seu quarto para ele dormir.
Mas, com o correr dos dias, o irreverente vendedor de bilhetes
começou a notar a besteira que tinha cometido: Cancão não gostava de
tomar banho; cuspia no chão; e era de higiene muito pouco aceitável.
Depois de um mês, Zé Areia procurou uma saída para livrar-se
da sua indesejável companhia.
À noite, quando deitou-se e procurou o travesseiro, sentiu
uma coisa viscosa no seu lugar: era a própria cobra.
Foi a gota d'água.
No dia seguinte, quando Zé Areia encontrou Cancão numa roda
de motoristas, perfilou-se e comunicou:
- Cidadão Cancão, quero comunicar-lhe que o senhor mudou-se.
E não precisa se incomodar. Já paguei um carroceiro para deixar os
seus trastes, inclusive a própria cobra, no bar de Áurea.
E, procurando uma coisa para rebater Zé Areia, Cancão lhe
disse:
- Aposto cem cruzeiros que você não vendeu hoje um bilhete de
loteria.
- Vendi.
E Cancão retrucou.
- Então, coloque em cima do paralamas os seus cem
cruzeiros.
Zé Areia notou logo a diferença.
- Você, ontem à noite, estava sem dinheiro. E como é que me
aparece hoje podendo gastar cem cruzeiros numa aposta?
De repente, veio à luz:
- Você voltou a trabalhar com o doutor Roberto...
E Cancão, vitorioso, na maior das alegrias:
- E eu posso deixar de trabalhar com um homem que parece dono
da casa da moeda?
É preciso que se diga do moral dessas pessoas. Eu nunca me
esqueci de uma história que me contaram, a de que Roberto, chegando a
uma casa, e notando que Cancão estava muito interessado na mulher do
homem, deu a seguinte ordem:
- Cancão, beije a dona da casa!
Desajeitadamente, Cancão obedeceu.
- Agora, pegue na buceta dela!
Cancão ficou atarantado. Mas o dono da casa e marido disse
para Cancão:
- Pegue, o doutor Roberto não está mandando?

por Alma do Beco | 10:16 PM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

.. .. ..

.. .. ..

Recentes


.. .. ..

Praieira
(Serenata do Pescador)


veja a letra aqui

.. .. ..

A imagem de fundo é do artista plástico e poeta Eduardo Alexandre©

layout by
mariza lourenço

.. .. ..

Powered by Blogger

eXTReMe Tracker