Tomo a pulso o direito a mim outrora negado. Meire Gomes
Levastes de mim apenas dias perdidos. Esses, esqueci-os em gavetas emperradas por ferrugem sedimentada. Coloquei-os em fornalhas de infernos consumidos. Não os quero nem por lembrança.
Refeita, respiro ares que não me trazem saudades. Sou nova em novas vestes. Sou outra.
Liberta por decisão minha e unânime de mim, sou acalanto suave sussurrado entre brumas fecundadas. Aspiro auroras a toda hora e as tenho comigo a todo instante. Estou eu. Em mim me fiz por condução da carne.
Entre o ser e o permanecer, busquei a distância e o amanhecer de mim. Fiz-me eu: aprendi que montanhas se desfazem ao vento.
Rezei por ti e pedi por mim. Lavei promessas em caldos santos.
Entre dedos fechados, fiz do meu pulso impulso: a liberdade nunca chega se não chamada.
Adentro rios inexplorados. Descubro horizontes onde a vista se perdeu. Ajo ao sabor de interiores meus: sou fado; sou tango a não mais soluçar travas de cotidianos perdidos: fiz-me eu.
O que outrora me foi negado, nem preciso como lembrança: as asas da memória pulam muros e me encontram em tempos repletos de rebeldia, quando o ser ousava serventias para si, ainda semente em busca de água.
Estou em mim, de volta. Dou voltas aceleradas aos passados que me fizeram morta e não os vejo: naufragaram na superfície ácida que o instante dissolveu.
A mim, hoje, tudo é possível. Visto-me artesã e moldo sandálias andarilhas. Jogo serpentinas ao mar e confetes ao reencontro comigo mesma. Fantasio futuros próximos e distantes; busco tintas amarelas para os dias saciados de azuis.
Sim: digiro fantasias.
Agora, como eu, não me acompanham planos de alforria: os miasmas em volta partiram em pânico.
Neuza Margarida Nunes
26 de Janeiro de 2005
Contemplando crustáceos à beira do mangue