O que preocupa é a desconstrução da democracia e da república.
Arnaldo Jabor
Júlio Pimenta
Nei Leandro, no Bar de Chico, Beco da Lama,
com humanóides de Marcelus Bob ao fundo
O OLHAR
Passei noites
olhando o espelho
para entender
o que sou
passei dias
vendo o céu
para entender
a vida
passei tardes
observando o mar
tentando entender
o porque de te amar
Diogo Sodré
O Galo Mimoso
Do Oiapoque ao Chuí
ninguém ouviu falar
história mais marcante
que a que vou lhes contar:
Aconteceu há muito tempo
no sertão do Seridó,
terra de cabra macho
que nem todos de Caicó.
Por ironia do destino
o nome dele era Mimoso,
mas de manso num tinha nada
era, sim, valente e fogoso.
Muito franzino de corpo
mas ligeiro de pernas e asas
muita gente ele enxotava
de volta pra suas casas.
De suas proezas
seu Véi César se encantava
e dona Formosa, feliz,
num sabia se ria ou chorava.
Nenhum bicho ou gente
com ele tinha vez,
pois o penudo era filho
de galo carijó e galinha pedrês.
Seu Juca, Vaca Véia,
Marreta e Besourão,
sempre assustados, gritavam:
prende o galo, Torrão!
Amorosa, paciente, acudia
Pegóba, que ofegante exclamava:
Num tenho medo de assombração
e muito menos de alma penada!
Mas veio um dia
que a todos entristeceu:
Minha gente, Mimoso sumiu!
Chorava, desolado, Zé Bedêu.
Robério Matos
NOTA DO AUTOR: Baseada em fatos reais. Acreditem!
É o Beco!
Convocado pelo jornalista Hugo Macedo, procuramos um local tranqüilo para que eu pudesse fazer umas caricaturas para o livro “Beco Estreito – Histórias e Estórias de Personagens de Parelhas”. Optamos pelo Bar de Chico, no Beco da Lama, centro de Natal.
Enquanto Hugo contava os “causos” e eu desenhava as cenas, eis que chega um homem somente de calção, descalço e completamente bêbado. Imediatamente, passou na nossa mesa e sentenciou:
- Eu sou pescador e estou completamente apaixonado pela cozinheira!
Depois, ocupou uma mesa e pediu uma cerveja. Não sem antes revelar a ela, aos prantos, que não poderia mais continuar vivendo sem a reciprocidade do seu amor, que não conseguia nem trabalhar direito, somente pensando nela, etc. A resposta da cozinheira, que ficou irada, foi mais do que rápida:
- Meu senhor, eu não gosto de quem anda descalço e tampouco de pescador!
Ele, imediatamente, se levanta e vai embora, voltando, alguns minutos depois, com uma bacia cheia de postas de peixe, entregando a ela, como se fosse o presente mais caro do mundo. Aí, ela perdeu completamente a paciência, dizendo:
- Eu já lhe disse que não gosto de homem descalço, de pescador, de catinga de peixe e nem de homem que fede a esse animal, como você!
Com lágrimas nos olhos, o pescador disse:
- Pois então espere, que eu volto já...
Continuamos no nosso trabalho, enquanto, entre boas risadas, comentávamos o surto da apaixonite aguda do pescador, quando, passados uns trinta minutos, ele retorna, vestido da cabeça aos pés, com mangas longas, calça social, meias e sapatos, tomado banho e penteado, ainda muito embriagado.
- Pronto! – ele disse – agora estou do jeito que você quer! Saiba que eu não posso viver sem você, meu amor! E me dê logo uma cerveja bem geladinha e sente aqui pra gente combinar o casamento.
Do balcão, Chico, o dono do bar, ria discretamente, quando ela, aos gritos, disse:
- Eu já lhe disse, condenado, que eu não quero nada com você! Nem vestido de ouro! Vá atrás de umas raparigas lá na Ribeira, porque nem o seu retrato eu quero ver!
As lágrimas desciam dos olhos do pescador, quando, na saída do bar, pegou os dois sapatos novinhos e jogou no telhado de uma casa comercial e foi embora, todo alinhado e descalço, ainda com as etiquetas que balançavam impulsionadas pelo vento que descia em direção ao fim do beco mais irreverente do mundo.
Leonardo Sodré
Ontem, Hoje e Amanhã
Tribuna do Norte, 30/10/05
Uma viagem no tempo. A madrugada de Natal, que ressuscita minha infância e os deslumbramentos alimentados pela percepção e imaginação de uma criança. Tudo era gigantesco: as arvores, as praças, as ruas e avenidas, as casas de alpendres e as calçadas, as igrejas e os sobrados. A cidade exalava um perfume inconfundível, peculiar e extasiante. Mistura de aromas de jasmim, margarida, dália, alecrim e do inebriante eucalipto. Em esquinas de todos os bairros, estrategicamente, vendedores de frutas incorporavam ao odor desse pomar, que envolvia a cidade, o cheiro do caju, da manga, da jaboticaba, da goiaba, da laranja cravo (agora chamada de tangerina), do sapoti e tantas outras frutas que compunham a dieta dos natalenses. Sem distinção de categoria social. Havia partilha comum de uma forma de viver.
O "grande ponto" na Avenida João Pessoa, a Praça Augusto Severo e seu estilo "belle époque", suas arvores, que pareciam espetar o infinito, a Avenida Tavares de Lyra, o cais onde aportavam a lancha de Luiz Romão e os botes que transportavam moradores e veranistas para a Redinha, a rua Dr. Barata e seu comércio tradicional, que resistiu até pouco tempo, a visão do Baldo e da subida para o Alecrim, a majestade da imagem de São Pedro no pináculo da igreja que lhe é consagrada, a antiga Praça "Gentil Ferreira", a eterna postura do rio Potengy debruçado sobre o mar, o Forte, as praias e as dunas como eram na minha infância. Tirol e Petrópolis eram especiais porque se revelavam diferentes. Bucólicos e muito mais serenos. De manhã cedo, uma espécie de névoa, fina e fria, adornava-os, mantendo nas folhas e nas flores a umidade de um orvalho que resistia até o domínio esplendoroso do sol. Mas os morros, que ainda hoje cercam a cidade, apesar da criminosa e estúpida devastação, conferiam, naquela época, aos arredores desses bairros, uma roupagem paradisíaca, fantasiosa e enigmática.
Tudo mudou muito rapidamente. A mudança não quer dizer retrocesso, atraso, descontinuidade, esquecimento. Ou revogação inapelável do ontem. Essa incursão sentimental é nostálgica quanto ao passado. Esqueceram, muito mais do que a beleza e a ternura românticas da cidade, o mais importante, insubstituível como civilização: a dimensão humana de cada um e de todos. Fragilizaram-se laços humanos antíteses de egoísmos, violências, mesquinharias, hipocrisias, cinismo, insensatez e insegurança que, infelizmente, predominam em âmbito social. Onde falhamos? Por que nos recusamos a reconhecer a trágica circunstância de que a cidade é submetida a um processo de inevitável despersonalização? Há um fenômeno universal em curso. É verdade. Mas nada impede que preservemos, apesar da "aldeia global", os vínculos com um passado fonte de humanidade, sentimentos e sonhos. Essência da alma da cidade.
As "Palavras de pórtico" de Fernando Pessoa revelam sentimentos que se hospedam na mente e no coração de todos os homens. Em qualquer lugar, cultura e ambiente. Especialmente quanto à dimensão da vida: "Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo". Esse conteúdo humano é a substância do presente que deve fecundar o futuro que sonhamos.
Cláudio Emerenciano