EDUARDO ALEXANDRE,
O MUNDO COMO ARTE E TRANSFIGURAÇÃO
“Não consigo compreender um artista para quem o seu trabalho não se configure como um doce manipular e engendrar dos hieróglifos da sedução. Toda arte que me fascina e comove exibe esse lembrar da linguagem sedutora do mundo”. (Baudrillard)
“Tudo que existe na obra de arte, na verdadeira obra de arte, é o mundo - e o vestígio dele capturado entre os dedos do artista” (Merleau Ponti).
O dilema milenar entre a co-pertinência objeto estético versus reflexão objetivada do mundo produziu, ao longo dos mais de dois mil anos da chamada Cultura Ocidental, debates e reflexões, obras e produtos culturais que, em sua maioria, só serviram para encher galerias de museus cobertos de espelhos e mofo, ou estantes e mais estantes de bibliotecas públicas ou privadas, consultadas e visitadas por soi dissant intelectuais, para quem aquele dilema pouco significou, dado o tamanho dos egos envolvidos.
Nas artes plásticas principalmente, picuinhas e falsas-diatribes sobre qual indivíduo detinha a melhor técnica ou a melhor “estrutura” de realização soterraram sob montanhas de retórica auto-indulgente o melhor da criação estética humana.
Pouco ou quase nada foi acrescentado aquele bizantino farfalhar Hegel/Baumgarteano sobre a excelência ou não excelência dos chamados objetos estéticos.
Nada como um sopro de ar fresco numa sala repleta de miasmas.
E é essa a sensação que tive ao contemplar a magnífica produção de Eduardo Alexandre, em exposição na Fundação José Augusto a partir desta semana, no Espaço Cultural Odilon Ribeiro Coutinho.
A grande arte, nos fala Espinoza, é uma arte que dá testemunho claro da intersubjetividade reveladora do mundo de cada um e do mundo enquanto produto dessa fricção criativa. Os 25 quadros de Eduardo Alexandre sacodem e estremecem as conformistas e conformadas bases da estética latina a partir do momento em que colocam em nossa frente um artista que jamais temeu, ou temerá, dar o seu testemunho sobre uma humanidade à beira da extinção.
Rubem Valentim, amigo muito querido e um dos artistas maiores do século passado, disse-me antes de morrer que só existe um tipo de artista: “aquele que tem olho de enxergar”. Lembro de Lúcia (sua esposa) arrematando: “o Rubem é assim mesmo, muito radical”. E não poderia ser de outra forma: não existe meio termo em criação artística. Ou se corta a cabeça medíocre da acomodação a estilos, formas e que-tais, ou dá no que deu: estamos afundados até o pescoço em uma arte que apenas serve aos desvios e insânias de uma sociedade fraturada em nervo e osso, mergulhada até a alma em sangue e ignorância, restolho de um sonho aristotélico e megalomaníaco de grandeza que jamais chegou, ou chegará, a sua completa fruição, porque os lobos a comerão inteira, lambendo os beiços após destroçarem aquilo que as fezes civilizatórias engendraram.
Com Eduardo não tem meio-termo. Não tem oitos. Apenas oitentas.
Poeta, jornalista, gerente da cultura, ele me lembra Edmund Wilson, o mais lúcido paradigma do homo poeticus do início do século XX, até que a CIA o calou quase que para sempre.
Eduardo vai mais além porque, diferentemente de Wilson, ele é um criador consumado e, como tal, sabe onde está a raiz daquela máxima eficiência expressiva, único diferencial aceitável para a identificação da arte empulhadora e da arte significante.
As artes plásticas, ao mesmo tempo em que surgem no universo humanizante como silencioso vetor de revelação do mundo e do estar-posto-no-mundo, são também aquelas onde as fraudes, a duplicidade, a enganação e a lengalenga encontram modos e meios mais fáceis de esconder suas faces bajuladoras e serviçais. É preciso ter a coragem de um Gaudier Brzeska, a ironia de um Topor ou a ousadia de um Brancusi para jogar esses fantasmas no lixo e cuspir na cara dos mercadores de cores, formas e estruturas.
A arte de Eduardo Alexandre tem tudo isso: é corajosa ao redescobrir a exuberância do ato de “pintar” no acariciamento farto da tela, como se mostrasse ao mundo e ao homem desse mundo que a cor é viva, que a cor vive, que nós somos como ela, vivos, jamais cadáveres ambulantes, cegos conduzindo cegos numa via escura e úmida esperando pelo milagre de um guia protetor nel mezzo del camino...
A arte de Eduardo Alexandre é irônica por desmitificar e desmistificar o pedantismo acadêmico daqueles que se escondem atrás de redes pessoais de influência ou prestígio junto às rodinhas e rodelas do poder, como se saraus, whisky e votos fossem acessórios para a verdadeira criação. Prestem atenção à enigmática "Polassar", ou ao díptico “Crepúsculo no Gargalheiras” e Crepúsculo no Piató”. Vejam (ênfase no VER) como a cor se revela e desvela enquanto um organismo vivo e vivente, como se o artista estivesse não apenas testemunhando concretamente o mundo, mas indo além e dizendo ao contemplador de sua obra: “ENXERGUE”.
A arte de Eduardo Alexandre é ousada por ser antes de tudo pessoal, inimitável e intransferível. Tem sua marca visível em cada milímetro de tinta espalhada como mágica sobre a tela, como uma mandala tibetana, como um quilt navajo, como o som do shofar ao fim do dia. Poucos artistas nestes dois últimos séculos (o que acabamos de viver e o que, espero, se nos seja dada a oportunidade de viver) foram capazes de serem fieis a si mesmos da forma fervorosa, meditativa, com que Eduardo engendra sua processualidade criativa.
Digo processualidade porque para Eduardo não existem “processos” criadores ou criativos. Ele ultrapassou, com anos-luz de distância e folga, o prisma teorético de indagação ou questionamento sobre “processos”. Para ele, o que existe é o ato criativo, puro e claro, transfigurado pela sua inimitável compreensão do que é a cor NO mundo, do que é a cor PARA o mundo, do que seria estar COM a cor e o mundo.
Por último, a resolução do dilema bi-milenar da arte e do objeto estético. Eduardo resolve essa querela de forma absoluta: ele demonstra, mostra e anuncia o fato artístico como a única realidade existente. Qualquer indagação ou abordagem teórica sobre o seu trabalho (inclusive esta humilde tentativa de levar você, acomodado leitor, meu irmão e semelhante, a vê-lo na Fundação José Augusto, de qualquer maneira que seja) é irrelevante porque, para Eduardo, pintura (como poesia, como produção/promoção cultural), arte de uma maneira geral, é um oficio, uma destinação, um compromisso inerente à sua condição de ser humano, perceptivo, sensível, e único.
Ver os seus quadros é obrigação de qualquer um que participe e seja atento (por um mínimo que seja) a essa perturbadora ciranda intersubjetiva à qual damos o nome de vida.
Marcílio Farias
Crítico de Arte
Fundação José Augusto:
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