Platão já sabia que a música é perigosa. Na República, um livro clássico da filosofia, ele tinha certas reservas quanto alguns modos musicais dos antigos gregos, porque dizia que podiam agitar a criatura selvagem e sem lei que habita em nós. Quando eu tentei ouvir pela primeira vez o Pierrot Lunaire de Schönberg senti um incômodo profundo.
Nada, nem o mais selvagem Death Metal ou o Hard Core mais feio, sujo e malvado, se compara a devastação interior daquela composição. Schönberg destroçou na sua obra a escala tonal tradicional, derivada das obras de Bach e Rammeau. Ele queria conbstruir seu próprio sistema tonal, inspirado numa estranha escala cromática. Daí desenvolveu a escala serial, inspirada nas composições de Wagner. A gente vê ecos de Schönberg em muitas experiências sonoras. Sister Ray do Velvet Underground é um exemplo da adequação de alguns princípios do atonalismo à eletrônica. Thelonius Monk, o grande pianista de Jazz, brincava perigosamente com o atonalismo em suas composições, causando ondas de mal estar, ansiedade e maravilhamento nas platéias. Arnaldo Baptista também dança na borda do abismo e chega a criar uma esfera de som toda própria e inusitada.
Schönberg brinca com a esquizofrenia que habita, escondida e sinistra, dentro de cada um de nós. Mas sua música é difícil e talvez nunca seja realmente deglutida pelas massas. O Rap não. Ele trabalha com outros monstros. Não falo da festa de corpos negros seminus dos norte-americanos. Mas do Rap nacional, que parece estar se deslocando da matriz norte-americana e produzindo um referencial próprio. Quando eu escuto Racionais MC ou mesmo o Quinto Andar, lançado agora para o Brasil na revista do Lobão, sinto que as soluções sonoras desse estilo flertam com outros diabinhos que moram na alma de cada ser humano.
O pânico (chamado em grego de Fobos) é filho do deus Ares. Na astronomia é uma lua que circunda Marte (O Ares romano). Tudo a ver. Filho da violência e do sangue, o pânico parece ser o modelo explicativo mais eficaz para se entender o que é a vida nas grandes metrópoles brasileiras. Estouradas por uma fissura social ancestral, cindidas por um fosso de exclusão, as grandes cidades brasileiras estão a cada dia cultivando em seus habitantes a ansiedade e o medo. Não é à toa que a Síndrome do Pânico está crescendo e, com seus sintomas fisiológicos de ondas de frio e calor parece que começa a rivalizar com a depressão, pelo posto de “doença psiquiátrica do momento”. O discurso e a sonoridade do Rap nacional parece ser produto desse sistema de vida, bem pouco natural e humano que a maravilhosa sociedade industrial andou produzindo para que possamos cultivar nossas psicoses de estimação.
Essa parece ser a grande função e o grande risco da arte, cutucar as feridas e os fantasmas que nos assombram. Eu ainda não consigo ouvir Schönberg. Estou tentando e quem sabe um dia eu estabeleça um bom acordo com a minha própria esquizofrenia e possa contemplar o Pierrot Lunaire. Já o Rap estou aprendendo a ouvir para ver se consigo domesticar o meu pânico. Me diga mesmo, amigo leitor, quem nessa época de sonhos intranqüilos, não é acossado por pequenos fantasmas, sombras, imagens tênues e desbotadas que, vez ou outra, parecem tomar conta, sem nenhum pudor, da paisagem urbana que nos rodeia. Você pode até tentar correr. Você pode até tentar fugir, mas nunca se esqueça de que, daquilo que nunca se esconde, ninguém pode permanecer oculto.
PABLO CAPISTRANO