domingo, abril 03, 2005

A "FRUTILÂNDIA" DOS POETAS


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Sem jeito, desconfiado, roupa sem o vermelho da poeira da viagem no jipe, banho de cuia tomado na pensão de Chicó, na flor dos meus dezesseis janeiros, à porta da residência modesta bati palmas e gaguejei o indispensável "ô de casa". Tinha uma obrigação, um dever sentimental, sagrado, uma promessa a cumprir no Assu, naquele ano dos anos 50. Visitar, saudar o dono da casa, mestre de muitos sonhos e senhor incontestável da mais úbere, abundante, edênica, maravilhosa e fértil gleba de todo o Vale - a "Frutilândia".
A incumbência me fora dada por meu pai, Othoniel, anos antes convidado solenemente, insistentemente, para ser sócio, meio a meio, de um colossal empreendimento de fruticultura. Redenção econômica de toda a região, gerando riqueza, justiça social, inovando a produção de frutas, legumes, hortaliças, tudo em grande escala, gigantescas proporções. Os pobres sairiam da miséria, teriam moradia, grandes vilas operárias, escolas, assistência médica, futuro. Largariam o secular corte da carnaúba, trabalho sazonal e mal-remunerado. Não se sujeitariam mais aos preguiçosos barões da cera, que nada plantavam, viviam em Natal jogando baralho no Natal Clube, tomando uísque, enriquecendo Maria Boa, passeando no Rio de Janeiro, impecáveis nos ternos de linho branco, lustrosos, gordos como bispos.
Moderníssimas máquinas, escavadeiras imensas, dragas descomunais - rebocadas desde Roterdão - abririam largo e profundo canal, em linha reta, de Assu a Macau. Ali, mar adentro, plantar-se-iam modernos, imponentes, equipados cais, frigoríficos, grandes armazéns. Luzentes guindastes, esteiras rolantes, saciariam a fome das bocarras dos porões das grandes embarcações da própria Companhia, espalhando por Oropa , França e Bahia cajus, mangas, pinhas, araticuns, mangabas, romãs, laranjas-cravo, abacaxis, maracujás - os dúlcidos e tropicais produtos do gigante complexo agroindustrial da biliardária sociedade CALDAS & MENEZES...
De volta ao Assu e à dura realidade, de novo bati palmas na soleira da casinha modesta do senhor da "Frutilândia", naquela rua do Assu, naquela era dos anos cinqüenta. Apareceu o amigo do meu pai, o sócio do sonho tão sonhado, tão detalhado, idealizado nas conversas dos dois. Disse-lhe quem era, fez-me uma festa daquelas, passando, suavemente, a mão na minha cachola sonhadora. Era magro, baixo, gestos nervosos, rápidos. Dando o nó na gravata, convidou-me a entrar, risonho, gentil, hospitaleiro. Calçava, notei, uma daquelas botas de feira. Calça, camisa, colete - tudo amarfanhado, encardido. Guiou-me em direção à cozinha, por uma picada, uma vereda aberta numa mata fechada de ferro-velho, pacotes de amarelados jornais e uma imensidão de garrafas até o teto - um "caminho de Santiago" que, como um peregrino, perpassei, com medo de lacraia e caranguejeira. Enquanto conversávamos, ferveu água e serviu-me um café saboroso, pegando fogo, coado de um pano que devia ter uns bons anos de uso diário e constante.
Na minha idade, não tinha engenho nem arte e nenhuma tenência para falar sobre poesia ou literatura com o idealizador da "Frutilândia". Mesmo que a minha residência, em Natal, vivesse, pululasse em certos dias, cheia de literatos e candidatos a poeta aperreando Othoniel sobre coisas de metrificação, leituras, autores e outras milongas mais - alguns deles pedindo remendos em versos de pé-quebrado. Ficava só cubando, sem pigorar, quem era besta ? Sem anuência ou conhecimento do dono da casa, tinha cometido, já, no Atheneu, algumas glosas sacanas e "burilado" uns três ou quatro sonetos decassílabos à moda de Augusto dos Anjos - coisas horrorosas...
Na cozinha acolhedora, o cavaco, o bate-papo, limitou-se, pois, às notícias da Capital, aos meus estudos, à saudação do "sócio" de Natal, à mútua e sincera admiração entre os dois, às amenidades. Nada sobre a "Frutilândia". Nada, também, acerca da razão social "CALDAS & MENEZES". Ele, entretanto, já na despedida - lembro bem - deu umas boas cutucadas nos políticos do Estado e de outras plagas, pilheriando, rindo com gosto, divertido.
Sol descambando, da porta da sala, do início do labirinto de ferro velho, jornal e garrafa de todo tamanho e cor, veio o chamamento: "Seu João, tá na hora!" Saímos. Era um meninote, chapéu-de-couro atolado na cabeça grande, cara de janduí. O homem bom me pediu licença e retornou aos cafundós do seu tugúrio. Voltou lépido, brilho nos olhos, vestindo um paletó tão encardido quanto o restante da indumentária. Numa das mãos, um surrado bisaco de lona; noutra, uma lazarina impecável, ajeitada mesmo - o cano brilhando mais do que espinhaço de pão doce, a coronha envernizada, bonita como os seiscentos.
O Poeta JOÃO LINS CALDAS, sublime sonhador, senhor de vaticínios para o seu Vale - o sócio do meu Pai - trancou a porta capenga da casinha. Apertou-me a mão, com calor, despedindo-se. Pediu desculpas pela pressa - ia caçar ! Argumentou, cavalheiro, que aquela era a hora dos preás e das rolinhas, das nambus escondidas no panasco dourado. E lá se foi, engravatado, predador solene, feliz da vida - o sonhador...
O curumiaçu, secretário e cúmplice, seguiu-lhe os passos ligeiros, no rumo - presumi - da "Frutilândia", procurando a presa miúda e saborosa.

Laélio Ferreira de Melo

por Alma do Beco | 6:38 PM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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