Faz hoje 50 anos da morte do doutor José Ivo Moreira Cavalcanti. Doutor Zé Ivo, como Natal inteira o conhecia, era médico e professor, num tempo em que a medicina, mais do que uma profissão, era um sacerdócio, missão para a qual o cidadão se doava no seu exercício de curar os doentes, servir à sociedade e fazer o bem ao próximo. Era o tempo do médico humanitário, a casa (casa, consultório e às vezes clínica) sempre aberta para receber e servir a qualquer hora do dia. Ah, eu me lembro da casa do doutor José Ivo! Era do lado da sombra da avenida Rio Branco, no quarteirão entre a João Pessoa e a coronel Cascudo. Na esquina, olhando para o Natal Clube, ficava a bonita casa que foi de Alberto Roseli, onde hoje está o Ducal, logo em seguida a dos Gosson e colada a ela a do seu Oscar Rubens de Paula, pai de Ademar Rubens de Paula, o “Rato Branco” do Ateneu, hoje advogado importante em São Paulo. Aí, em seguida, vinha a residência do dr. José Ivo e, fechando o quarteirão, na esquina da estreita Rua Coronel Cascudo, a casa de taipa dos Cajaranas.
Do outro lado da avenida (lado do sol), que tinha mão e contramão, os poucos ônibus subindo e descendo, passava também o bonde que vinha do Alecrim e das lonjuras de Lagoa Seca no rumo da Ribeira, depois de entrar pela esquerda na Ulisses Caldas, mais embaixo, morava o seu irmão Francisco Ivo, doutor Francisco Ivo, advogado famoso. Casa larga, enorme, umas cinco janelas e entrada pela lateral, portão de ferro abrindo para a calçada. Até onde vai a minha memória, era a única casa residencial do quarteirão, lado do sol da Rio Branco, pois na esquina com a João Pessoa ficava o Café Grande Ponto, de seu Andrade, e que deu nome a todo aquele logradouro por onde cruzavam os caminhos de Natal. Natal dos anos quarenta, Natal dos tempos da Guerra. A outra esquina, a da Coronel Cascudo, tinha o prédio sobradado do Círculo Artístico Operário, que ainda lá está. No térreo funcionava a famosa livraria Boi Tatá, de Abelardo Moraes, onde Newton Navarro mostrou seus primeiros trabalhos de pintor e se reuniam os jovens poetas da pequena cidade que não passava dos 60 mil habitantes. Quando a livraria fechou, apareceu Jaeci com o seu estúdio fotográfico. Entre a residência do doutor Francisco Ivo e o Café Grande Ponto, havia uma casa estreita onde os irmãos Grevi abriram um estúdio de fotografia. Valdemir Germano pode contar essa história. Na esquina está hoje o edifício Amaro Mesquita e toda a largura da casa do mestre Ivo já foi banco e foi também a loja 4.400. Nem sei agora o que é. As duas mais importantes praças de automóveis de aluguel de Natal ocupavam o meio fio do quarteirão. Entre eles, o luxuoso e luzidio Mercury preto de Manoel Henrique, que era um dos homens mais elegantes de Natal. Tanto assim, que Jota Epifânio o incluiu numa de suas listas famosas dos Dez Mais. Manoel Henrique, sempre de terno e gravata, nos trinques, transportava as figuras mais importantes da Cidade. Foi motorista de governadores, senadores e generais.
Antes de se formar em Medicina, o dr. José Ivo foi professor secundário, do quadro da Escola Normal de Natal e da Escola Técnica de Comercio do Prof. Ulisses de Gois, ensinou Educação Física (andava pelos 18 anos e praticava o esporte do remo, campeão de skif pelo Centro Náutico Potengi). O magistério e a prática de esportes não impediam suas andanças pela boemia do pequeno burgo, companheiro do poeta Othoniel Menezes nas serenatas de então. Foi médico da turma de 1934 da Faculdade de Recife e já passava dos 33 anos de idade. No decorrer da década de 40, ao lado de outros colegas, entre eles o dr. Clóvis Sarinho, fundou a Policlínica do Alecrim (hoje Hospital Prof. Luiz Soares). Foi fundador, também, da Faculdade de Farmácia e Odontologia (1948) e da Associação de Medicina e Cirurgia do Rio Grande do Norte e comandou o Serviço de Saúde da Polícia Militar do Estado, substituindo o capitão-médico Dix-huit Rosado, que se elegia em 1946 deputado estadual. Na sua gestão iniciou-se a construção do Hospital da Polícia Militar, da qual foi o primeiro diretor.
Doutor José Ivo não cobrava consultas. O jurista Miguel Seabra Fagundes, outro grande brasileiro, seu amigo e companheiro, conta em artigo que escreveu quando de sua morte e publicado no Jornal de Natal (jornal de Djalma Maranhão), edição do dia 15 de maio de 1955, a seguinte passagem:
- Muitas vezes fui ao seu consultório receber remédios para dar a pessoas pobres. Ele havia atendido a mais de 10 pessoas e, na “Cuinha”, nada havia caído! Era de uma incrível resistência em receber dinheiro, fugindo até da gente, quando tinha algum dinheiro. Extremamente bem-humorado, fazia, porém, enorme sacrifício para disfarçar o mal-estar interior provado muitas vezes pela sua saúde em debandada. Quantas vezes, pretextando estar bem e disposto, saía a ver doentes, muito mais saudáveis do que ele naqueles dias!”
A casa do doutor José Ivo, na avenida Rio Branco, estava sempre cheia de amigos e colegas, ricos e pobres, cristãos ou não, católicos e ateus (o anfitrião era um líder católico, pertencente à Congregação Mariana e à Irmandade dos Passos), esquerdistas e reacionários, políticos, empresários, intelectuais. Era um ponto de convergência do que a cidade tinha de mais atuante na sua variada paisagem humana. Gente assim como o comendador Ulisses de Gois, o mestre Câmara Cascudo, Dom Eugênio Sales, o cônego Luiz Wanderley, o jurista Seabra Fagundes, que foi Interventor do Rio Grande do Norte e Ministro da Justiça (Governo do presidente Café Filho), os advogados Oto Guerra, José Baptista Emerenciano (seu primo) e José Siqueira de Medeiros (Siqueirinha), o juiz Eutiquiano Reis, os médicos Clóvis Sarinho e José Tavares, os dentistas José Carlos Leite e Augusto de Souza (seu vizinho mais embaixo da Rio Branco), o poeta e médico Esmeraldo Siqueira, os empresários Felinto Manso e Amaro Mesquita, o tabelião Alínio Azevedo, Gentil Nesi, José e Enéas Reis. E entre eles, essas figuras maiores da província, os notáveis da aldeia, viam-se também pessoas simples, anônimos passantes da avenida, seus admiradores. Alguns nem entravam, ficavam na calçada trocando palavras, diante da janela, onde, debruçado no parapeito e às vezes ao lado de dona Josefina, sua mulher, doutor José Ivo acompanhava o vai-e-vem vespertino, o crescimento da urbe, o comércio se instalando no Centro da Cidade, com a abertura das lojas chiques e a larga avenida aos poucos se transformando numa agitada e colorida passarela. Ali era um dos caminhos do Grande Ponto. A cidade começava a se encontrar por suas esquinas, nos bares e restaurantes alinhados que se instalavam também nas ruas João Pessoa e Princesa Isabel: sorveteria Cruzeiro, restaurante Acaiaca, Bar e Confeitaria Cisne, o Café São Luís (cujo proprietário, Luiz Veiga, com um toque de sofisticação, chamava de “posto de degustação”). Os consultórios médicos deixam a Ribeira, que ia perdendo a sua majestade, e sobem para a Cidade. Até o carnaval - com o seu corso e suas batalhas de confetes e serpentinas, suas odaliscas, corsárias, colombinas e tirolesas, era agora na Rio Branco.
Woden Madruga
Tribuna do Norte - 03/04/05