Vicente Serejo
O Jornal de Natal 07/03/05
Não, nós não tínhamos heróis. Os ditos de verdade ainda não haviam pousado sobre as páginas dos nossos livros escolares. E os outros, os heróis inventados, desses, só um era íntimo de nossos ouvidos e de nossas casas: Jerônimo, o herói do sertão. Assim mesmo, era um herói invisível que só chegava nas asas da musiquinha do "Melhoral, / melhoral, é melhor /e não faz mal". Antes da Voz do Brasil ele já desaparecia como se fugisse no olho mágico do rádio, e só voltava dia seguinte, depois dos acordes sublimes da Hora do Ângelus.
Ali, no pequeno e pobre reinado de Areia Preta, além dos craques de futebol e de um herói militar cheio de medalhas no peito, ali era um lugar sem novidades. Só um boêmio espantava a melancolia das noites quando chegava no seu andar cambaleante, alegre e ingênuo. Cerimonioso, batia palmas no portão de sua própria casa. Algumas tardes de domingo, era ele a chamar a melancolia tocando seu saxofone rouco que só muitos anos depois, e aprendi com Vinícius de Morais, a exemplo de Pixinguinha, também chorava velhas mágoas de amor.
Agora descubro, triste e só, que ninguém era importante na minha rua. Uma casa de telhados mais fartos se destacava, na esquina com a ladeira que vinha da Dois de Novembro, e só. As outras, melhores umas e mais simples outras, tinham todas aquele ar de vida comum. De casinhas sem glórias, guardadas por quintais quietos e cheios de sombra. Talvez uns dois ou três automóveis, se tantos. Um deles era o jeep de um senhor de risos e gestos sempre generosos que nunca negava uma carona a um vizinho que subia a pé a ladeira da Pinto Martins.
Hoje, quando olho do alto a minha paisagem antiga, vejo que em certo ângulo não mudou muito. Os coqueiros da ponta ainda estão lá, mesmo que não mais estejam todos aqueles da infância. Vista da avenida, é como se ainda existisse a velha jangada de pedra e cimento, com sua vela soprada pelos ventos que chegam à cidade sobre seu mar antigo. Em seu lugar, a nova jangada, estilizada e sem graça, coleciona os mesmos ventos daquelas dias velhos. E a igrejinha, agora entre arranha-céus, deve ter a mesma fé daqueles dias idos e vividos.
A Praia do Meio era assim chamada porque ficava, como ainda hoje, a meio caminho entre Areia Preta e a Praia do Forte. Só depois virou Praia dos Artistas, cheia de moças bonitas inaugurando com seus biquínis a temporada de desejos, e de rapazes audazes nos seus carros. Com o tempo, a moda foi empurrando todos eles na direção do Forte. E lá ficaram, até que Ponta Negra passou a atrair as atenções. O turismo começava a ser a força geradora de investimentos e negócios, e a cidade, invadida como nos tempos coloniais, abriu suas portas.
Ainda alcancei aqueles pedaços de mar entre a Fortaleza e os coqueiros de Areia Preta entregues aos ventos do veraneio. Depois, algumas boas casas, restaurantes, os primeiros edifícios. E tudo foi ficando agitado e feérico. Talvez ainda reste, de tudo, um pouco do desenho daquele mar recortado em pequenas enseadas. Mas o farol de Mãe Luiza, no alto do morro, esse não tem mais o porte altaneiro. Foi encoberto pelos edifícios, e seus fachos batem contra os paredões como se tentassem, em vão, chegar ao mar. Tudo em nome do progresso.