segunda-feira, março 07, 2005

Pequenos heróis

Sectur

Vicente Serejo
O Jornal de Natal 07/03/05

Não, nós não tínhamos heróis. Os ditos de verdade ainda não haviam pousado sobre as páginas dos nossos livros escolares. E os outros, os heróis inventados, desses, só um era íntimo de nossos ouvidos e de nossas casas: Jerônimo, o herói do sertão. Assim mesmo, era um herói invisível que só chegava nas asas da musiquinha do "Melhoral, / melhoral, é melhor /e não faz mal". Antes da Voz do Brasil ele já desaparecia como se fugisse no olho mágico do rádio, e só voltava dia seguinte, depois dos acordes sublimes da Hora do Ângelus.
Ali, no pequeno e pobre reinado de Areia Preta, além dos craques de futebol e de um herói militar cheio de medalhas no peito, ali era um lugar sem novidades. Só um boêmio espantava a melancolia das noites quando chegava no seu andar cambaleante, alegre e ingênuo. Cerimonioso, batia palmas no portão de sua própria casa. Algumas tardes de domingo, era ele a chamar a melancolia tocando seu saxofone rouco que só muitos anos depois, e aprendi com Vinícius de Morais, a exemplo de Pixinguinha, também chorava velhas mágoas de amor.
Agora descubro, triste e só, que ninguém era importante na minha rua. Uma casa de telhados mais fartos se destacava, na esquina com a ladeira que vinha da Dois de Novembro, e só. As outras, melhores umas e mais simples outras, tinham todas aquele ar de vida comum. De casinhas sem glórias, guardadas por quintais quietos e cheios de sombra. Talvez uns dois ou três automóveis, se tantos. Um deles era o jeep de um senhor de risos e gestos sempre generosos que nunca negava uma carona a um vizinho que subia a pé a ladeira da Pinto Martins.
Hoje, quando olho do alto a minha paisagem antiga, vejo que em certo ângulo não mudou muito. Os coqueiros da ponta ainda estão lá, mesmo que não mais estejam todos aqueles da infância. Vista da avenida, é como se ainda existisse a velha jangada de pedra e cimento, com sua vela soprada pelos ventos que chegam à cidade sobre seu mar antigo. Em seu lugar, a nova jangada, estilizada e sem graça, coleciona os mesmos ventos daquelas dias velhos. E a igrejinha, agora entre arranha-céus, deve ter a mesma fé daqueles dias idos e vividos.
A Praia do Meio era assim chamada porque ficava, como ainda hoje, a meio caminho entre Areia Preta e a Praia do Forte. Só depois virou Praia dos Artistas, cheia de moças bonitas inaugurando com seus biquínis a temporada de desejos, e de rapazes audazes nos seus carros. Com o tempo, a moda foi empurrando todos eles na direção do Forte. E lá ficaram, até que Ponta Negra passou a atrair as atenções. O turismo começava a ser a força geradora de investimentos e negócios, e a cidade, invadida como nos tempos coloniais, abriu suas portas.
Ainda alcancei aqueles pedaços de mar entre a Fortaleza e os coqueiros de Areia Preta entregues aos ventos do veraneio. Depois, algumas boas casas, restaurantes, os primeiros edifícios. E tudo foi ficando agitado e feérico. Talvez ainda reste, de tudo, um pouco do desenho daquele mar recortado em pequenas enseadas. Mas o farol de Mãe Luiza, no alto do morro, esse não tem mais o porte altaneiro. Foi encoberto pelos edifícios, e seus fachos batem contra os paredões como se tentassem, em vão, chegar ao mar. Tudo em nome do progresso.

por Alma do Beco | 9:17 PM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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A imagem de fundo é do artista plástico e poeta Eduardo Alexandre©

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