A sessão estava bem animada na Confeitaria. Olívio, satisfeito da vida, antegozava o apurado. Estórias, causos, anedotas, discussões sobre futebol e política já havia acontecido a três por dois, cruzando-se, duma mesa para outra, provocando frouxos de riso, gargalhadas, bravatas, ditos, provocações, murros na mesa, tentativas de briga que a turma do deixa-disso logo acalmava.
Num hiato de silêncio, ouviu-se nitidamente quando Antônio ( Dantas ) Careca emitiu parecer sobre conceituado cidadão:
- Este ? Leva mais chifre do que pano de toureiro !
Convenhamos que se não for um recorde, situa-se nas imediações da ideal marca.
Então o assunto em pauta girou em torno da benemérita associação dos maridos conformados.
O BUZINADOR
Wilson Brandão, vermelho que só camarão, a careca luzindo, a voz em falsete, iniciou o campeonato:
- Em meu bairro, mora um pernambucano que a quinhentos metros de casa começa a buzinar estridentemente o seu Ford. Ele diz que é para abrirem o portão da garagem. Os filhos da Candinha afirmam que é para o caso de ter alguma visita em casa, ele encontrar, cara metade e visitante, devidamente compostos. Providência adotada desde que deparou-se com a mulher com o vestido pelo avesso, um pé num sapato e outro numa chinela e um amigo da família, branco que só alvaiade, as mãos trêmulas, a camisa desabotoada e o cinturão fora das calças.
O ESTATÍSTICO
Moisés Villar saltou do seu canto, apresentando contribuição:
- Em minha rua, tem um quarentão que afirma possuir o método infalível para quem desconfia da mulher. É bater com força na porta da frente e, ato contínuo, correr para a porta dos fundos.
- Não entendi.
- Empregando esse método, ele confirma que já flagrou oito fundistas tentando escapulir na maior velocidade.
E, numa estatística digna de registro:
- Quatro em pelo, quatro somente de cuecas.
A MISSÃO
Luís Tavares, então, pediu a palavra. Contou que, relutantemente, aceitara incumbência de amigo que ruminava desconfianças sobre o comportamento da ilustre consorte. A quem dera status, roupas caras, perfumes franceses, até carro.
Queria que Luís o libertasse da dúvida atroz. Seria um serviço que não havia dinheiro que pagasse.
Uma semana depois, com muito jeito, escolhendo palavras, fazendo circunlóquios, Luís apresentou relatório:
- Sua mulher estava com o carro parado numa esquina, quando passou um cidadão noutro e fez , com a mão, o sinal convencional de me acompanhe. E seguiu em frente e ela atrás. Entra rua, sai rua, atravessa avenidas e bairros e atinge a periferia.
O marido fez a primeira intervenção:
- Minha mulher é uma barbeira de marca maior ! Numa cidade de calçamento tão precário, buracos mil, é até uma felicidade ter alguém na dianteira, servindo de bandeira.
Luís gostou das gírias automobilísticas mas não aprovou a interrupção. Estava aflito para dar logo o serviço:
- Pois bem ! Meia hora depois, já num subúrbio distante, ela estacionou na porta duma casa algo suspeita.
- Algo suspeita ? Não seria a casa de algum parente dela ? Ela possui uns familiares que vou te contar...
Luís foi fechando a cara.
A VISITA
- Se era parente, não sei. Sei que ela foi entrando e encaminhando-se para o quarto.
- O marido tornou a conjeturar:
- Será que havia alguém doente a quem ela fora fazer a caridade de uma visita ?
O nosso exímio cantor de tango e boêmio já estava por conta.
- Caridade ? Bem pensado ! Caridade, por certo. Mas não sei que diabo de caridade era, que ela foi tirando meia, sapato, blusa, saia...
O marido escandalizava-se:
- Como é que você inteirou-se disso ?
Quase explodindo, Luís, já meio arrependido, penitenciou-se:
- É que, para fazer um favor a um amigo, fiz um papel safado ! Meti o olho num buraco de fechadura.
O insigne varão caía das nuvens. Ele, que tinha Luís em tão alto canto !
- Com efeito! Procedimento dos mais condenáveis. A privacidade alheia deve ser respeitada !
- Mas vamos aos detalhes. Exijo provas. Quero fatos concretos !
Luís Tavares, a esta altura, vacilou. Sua militância sherloqueana entrara em pane.
- Confesso que não vi mais nada. Também, ela pendurou a calcinha na chave da porta... Por mais que eu tentasse, não enxergava coisa alguma.
O seu interlocutor quedou-se cismarento. Tomou um gole de cerveja e, aos poucos, abriu um sorriso.
- Esta minha mulher tem cada uma ! Ela é assim mesmo. De vez em quando, fica pelada. Sofre dum calor crônico. Parece até doença.
E justificando-a:
- Também, numa cidade de clima escaldante como o nosso ...
O PROVEDOR
Luís continha-se para não soltar palavrão. E foi numa delicadeza digna dos maiores encômios, produto de seus tempos no Rio de Janeiro, cidade grande onde não se dá trelas a certos escrúpulos provincianos, que estendeu a manopla e apertou com força a mão do outro.
- Pois, missão cumprida ! E meus parabéns !
O parabenizado, doido para safar-se do aperto de mão que mais parecia uma torquez a lhe esmigalhar os dedos, balbuciou ingênuo:
- Parabéns, por quê ?
E Luís, reforçando a saudação, agora com raiva:
- Você foi eleito, agora mesmo, Provedor ad-perpetuam da Irmandade de São Cornélio...