domingo, fevereiro 13, 2005

Luís Tavares e o provedor da Irmandade



A sessão estava bem animada na Confeitaria. Olívio, satisfeito da vida, antegozava o apurado. Estórias, causos, anedotas, discussões sobre futebol e política já havia acontecido a três por dois, cruzando-se, duma mesa para outra, provocando frouxos de riso, gargalhadas, bravatas, ditos, provocações, murros na mesa, tentativas de briga que a turma do deixa-disso logo acalmava.
Num hiato de silêncio, ouviu-se nitidamente quando Antônio ( Dantas ) Careca emitiu parecer sobre conceituado cidadão:
- Este ? Leva mais chifre do que pano de toureiro !
Convenhamos que se não for um recorde, situa-se nas imediações da ideal marca.
Então o assunto em pauta girou em torno da benemérita associação dos maridos conformados.

O BUZINADOR

Wilson Brandão, vermelho que só camarão, a careca luzindo, a voz em falsete, iniciou o campeonato:
- Em meu bairro, mora um pernambucano que a quinhentos metros de casa começa a buzinar estridentemente o seu Ford. Ele diz que é para abrirem o portão da garagem. Os filhos da Candinha afirmam que é para o caso de ter alguma visita em casa, ele encontrar, cara metade e visitante, devidamente compostos. Providência adotada desde que deparou-se com a mulher com o vestido pelo avesso, um pé num sapato e outro numa chinela e um amigo da família, branco que só alvaiade, as mãos trêmulas, a camisa desabotoada e o cinturão fora das calças.

O ESTATÍSTICO

Moisés Villar saltou do seu canto, apresentando contribuição:
- Em minha rua, tem um quarentão que afirma possuir o método infalível para quem desconfia da mulher. É bater com força na porta da frente e, ato contínuo, correr para a porta dos fundos.
- Não entendi.
- Empregando esse método, ele confirma que já flagrou oito fundistas tentando escapulir na maior velocidade.
E, numa estatística digna de registro:
- Quatro em pelo, quatro somente de cuecas.

A MISSÃO

Luís Tavares, então, pediu a palavra. Contou que, relutantemente, aceitara incumbência de amigo que ruminava desconfianças sobre o comportamento da ilustre consorte. A quem dera status, roupas caras, perfumes franceses, até carro.
Queria que Luís o libertasse da dúvida atroz. Seria um serviço que não havia dinheiro que pagasse.
Uma semana depois, com muito jeito, escolhendo palavras, fazendo circunlóquios, Luís apresentou relatório:
- Sua mulher estava com o carro parado numa esquina, quando passou um cidadão noutro e fez , com a mão, o sinal convencional de me acompanhe. E seguiu em frente e ela atrás. Entra rua, sai rua, atravessa avenidas e bairros e atinge a periferia.
O marido fez a primeira intervenção:
- Minha mulher é uma barbeira de marca maior ! Numa cidade de calçamento tão precário, buracos mil, é até uma felicidade ter alguém na dianteira, servindo de bandeira.
Luís gostou das gírias automobilísticas mas não aprovou a interrupção. Estava aflito para dar logo o serviço:
- Pois bem ! Meia hora depois, já num subúrbio distante, ela estacionou na porta duma casa algo suspeita.
- Algo suspeita ? Não seria a casa de algum parente dela ? Ela possui uns familiares que vou te contar...
Luís foi fechando a cara.

A VISITA

- Se era parente, não sei. Sei que ela foi entrando e encaminhando-se para o quarto.
- O marido tornou a conjeturar:
- Será que havia alguém doente a quem ela fora fazer a caridade de uma visita ?
O nosso exímio cantor de tango e boêmio já estava por conta.
- Caridade ? Bem pensado ! Caridade, por certo. Mas não sei que diabo de caridade era, que ela foi tirando meia, sapato, blusa, saia...
O marido escandalizava-se:
- Como é que você inteirou-se disso ?
Quase explodindo, Luís, já meio arrependido, penitenciou-se:
- É que, para fazer um favor a um amigo, fiz um papel safado ! Meti o olho num buraco de fechadura.
O insigne varão caía das nuvens. Ele, que tinha Luís em tão alto canto !
- Com efeito! Procedimento dos mais condenáveis. A privacidade alheia deve ser respeitada !
- Mas vamos aos detalhes. Exijo provas. Quero fatos concretos !
Luís Tavares, a esta altura, vacilou. Sua militância sherloqueana entrara em pane.
- Confesso que não vi mais nada. Também, ela pendurou a calcinha na chave da porta... Por mais que eu tentasse, não enxergava coisa alguma.
O seu interlocutor quedou-se cismarento. Tomou um gole de cerveja e, aos poucos, abriu um sorriso.
- Esta minha mulher tem cada uma ! Ela é assim mesmo. De vez em quando, fica pelada. Sofre dum calor crônico. Parece até doença.
E justificando-a:
- Também, numa cidade de clima escaldante como o nosso ...

O PROVEDOR

Luís continha-se para não soltar palavrão. E foi numa delicadeza digna dos maiores encômios, produto de seus tempos no Rio de Janeiro, cidade grande onde não se dá trelas a certos escrúpulos provincianos, que estendeu a manopla e apertou com força a mão do outro.
- Pois, missão cumprida ! E meus parabéns !
O parabenizado, doido para safar-se do aperto de mão que mais parecia uma torquez a lhe esmigalhar os dedos, balbuciou ingênuo:
- Parabéns, por quê ?
E Luís, reforçando a saudação, agora com raiva:
- Você foi eleito, agora mesmo, Provedor ad-perpetuam da Irmandade de São Cornélio...
José Alexandre Garcia - Confeitaria Delícia II

por Alma do Beco | 9:21 AM


Hugo Macedo©

Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco libertário, Beco pai das ruas do mundo todo.

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